Gian Paolo Dallara e Paulo Stanzani tinham ambos 29 anos. Muito antes de se tornarem nomes incontornáveis do mundo automóvel do século XX, eram dois jovens engenheiros ao serviço de Ferruccio Lamborghini. Na fábrica de Sant’Agata Bolognese, às portas de Bolonha, davam asas ao seu entusiasmo: queriam surpreender o chefe com um projeto totalmente novo. Não é que trabalhar na Lamborghini fosse coisa chata ou rotineira, nada disso. Em 1965, o entusiasmo estava ao rubro e os coupés de Ferruccio estavam a dar nas vistas, mas aquela dupla queria ir além do que estava a ser feito. Queriam fazer um desportivo sem compromissos, um carro de competição para ser usado no dia-a-dia. Depois do primeiro chassis concluído, nem eles acreditavam aquela loucura fosse autorizada. Felizmente, a história foi outra… e assim nascia, um ano depois, o Miura. Faz agora meio século.

O Lamborghini Miura está a celebrar os 50 anos de existência, uma data carregada de simbolismo para a casa de Sant’Agata Bolognese. Afinal, este foi o carro que colocou Enzo Ferrari a coçar a cabeça e que elevou decisivamente a marca à categoria de mito na história do automóvel. Mostrado pela primeira vez no Salão de Genebra em Março de 1966, foi o primeiro “Lambo” a adotar um nome próprio e redefiniu totalmente o conceito de carro desportivo na época, graças à sua configuração de motor central e de performance sem filtros. Quando foi lançado, o Miura era o carro de produção mais rápido do mundo, alcançando 280 km/h e acelerando dos 0 aos 100 km/h em 6,7 segundos.

Produzido entre 1966 e 1974, teve três “vidas” distintas com o mesmo coração, um 4 litros V12 montado transversalmente, herdado diretamente do 400 GT. A primeira série, fabricada até 1969, debitava 350 cv, a que se seguiu, até 1971, a versão S, com 370 cv. O último e porventura mais famoso de todos os Miura, a versão SV, viu a potência subir até aos 385 cv e introduziu um sistema de lubrificação independente para a caixa de velocidades. Exteriormente, os SV distinguem-se pelas molduras das óticas dianteiras e pelos guarda-lamas traseiros mais largos, uma modificação que além de tornar o conjunto mais agressivo permitiu acomodar os pneus de maior dimensão. Nestes oito anos de produção, saíram da fábrica de Sant’Agata Bolognese cerca de 760 unidades do Miura.

Para além de ter estabelecido o arquétipo dos carros desportivos – e o Miura foi especialmente disruptivo neste aspeto – este foi ainda o primeiro Lamborghini a adotar as designações inspiradas em raças de touros ou no jargão da tauromaquia. Ferruccio nunca explicou claramente porque decidiu assim, mas sempre que lhe perguntavam deixava escapar que o seu signo era Touro…

No caso do Miura, ainda uma cereja no topo do bolo: aquele logotipo na traseira, meio naïf, desenhado por Pierro Stroppa, mantém-se até hoje como um dos mais emblemáticos da história do automóvel.

 

 

 

Uma história de entusiasmo

O Miura nasceu do entusiasmo de Dallara e Stanzani e de um ato de fé de Ferruccio Lamborghini, primeiro quando os contratou e lhes deu livre curso para inovarem e, depois, ao acolher os seus projetos. O caso do Miura é exemplar. Os dois jovens engenheiros queriam ir mais longe do que se fazia na época e pretendiam desenvolver um carro que se assumisse como uma versão pouco domesticada de um carro de competição puro. Um carro de corridas para usar na estrada. Isto era muito mais do que o padrão dos anos 60, dominado pela reinterpretação mais tradicional, e filtrada, dos GT clássicos.

Tudo começou ainda em 1965 com um chassis, tão leve quanto robusto, com colocação central do motor. Propulsor, caixa de velocidades e diferencial eram acoplados num único bloco de fundição, permitindo assim maior resistência à elevada performance pretendida.

Diz a história que Ferruccio, para surpresa de Dallara e Stanzani, aprovou de imediato o projeto, por enquanto ainda com o nome de código 400 TP, apesar o ter feito pelas razões erradas. Acreditava que daria apenas um bom “show-car”, uma jogada interessante de marketing para uma marca que estava agora a obter as suas primeiras conquistas de notoriedade.

O chassis foi apresentado pela primeira vez no Salão de Turim, em Outubro de 1965, mas faltava o resto… uma carroçaria condizente com o espírito do carro. Entra em cena outro nome mágico da história automóvel, o designer italiano Nuccio Bertone, que seguia com interesse a carreira daquela jovem marca. “Eu sou a pessoa que conseguirá fazer o sapato para o teu pé”, terá dito a Ferruccio Lamborghini quando viu o chassis em Turim. Apertaram as mãos e chegaram a acordo.

Bertone sabia bem a quem entregar o trabalho. A missão foi atribuída a Marcello Gandini, mais um nome incontornável da história automobilística do século XX. Seriam dele projetos como os Lamborghini Countach e Diablo, entre outros, mas também de carros tão importantes como o primeiro BMW Série 5, o Lancia Stratos, Fiat X1/9, Bugatti EB110, ou os Citroën BX e o pequeno Innocenti Mini.

 

 

Aquele aperto de mão em Turim lançou uma corrida contra-relógio: segundo relatos de Gandini (na foto acima com Dallara e Stanzani), toda a gente trabalhou freneticamente entre Novembro e Fevereiro para ter o Miura pronto para o Salão de Genebra: “Durante quatro meses, foram sete dias por semana, sem parar, como loucos”.

Dias de glória

Pedia-se um “milagre” e, quatro meses depois, ele apareceu: o primeiro Miura foi uma das estrelas do Salão de Genebra, numa edição que acompanhava o “boom” automobilístico na Europa. O número de expositores era maior do que nunca, num total de 1178 vindos de 22 países, o suficiente para conquistar o astronómico número de 474 854 visitantes – um recorde absoluto na altura.

O Miura conquistou atenções frente a estrelas como o Aston Martin DB5 de James Bond em “Goldfinger”, ou as novidades vindas de Itália, nomeadamente o Alfa Romeo 1600 Spider. A imprensa especializada foi especialmente calorosa, com ecos que perduram até hoje. Num evocativo do Salão de Genebra de 1966 publicado recentemente, os britânicos da “Auto Week” recordam o Miura enquanto estrela do Salão: “Um carro tão espetacular que nos forçou a usar no título a palavra “Coruscating” (um sinónimo, pouco utilizado e mais literário, para “cintilante” ou “reluzente”). A “Auto Week”, que esteve no Salão com um enviado especial, lembra que havia mais para ver em Genebra, citando o Ferrari California Spider, de Pininfarina: “Mesmo valendo provavelmente algumas vezes mais que um Miura, parecia datado quando comparado com o modelo da marca do touro”.

 

O entusiasmo estava ao rubro e Ferruccio Lamborghini decidiu capitalizar o momento. Dois meses depois de Genebra, levou um Miura até ao Grande Prémio do Mónaco, o acontecimento mais emblemático do automobilismo mundial e, em particular, para a elite italiana. Naquela tarde de sábado, o Miura cor de laranja estacionado frente ao Hotel de Paris atraiu tantas atenções que, dizem os relatos da época, entupiu por completo a praça do Casino. E esse tal entusiasmo generalizado começou a equivaler a encomendas.

A verdade é que o Miura foi um sucesso imediato, um mito instantâneo que se tornou também em acessório fundamental para qualquer “celebridade” que se prezasse. Frank Sinatra, Rod Stewart ou Miles Davis, entre outros, tinham um.

E, claro, nenhum evocativo do Miura poderia ficar completo sem a menção à sequência inicial do filme “The Italian Job” (1969). Aquele genérico, filmado no Col du Gran Saint Bernard, na fronteira entre a Suiça e Itália, ao som de “On Days Like These”, cantado por Matt Monro, colocou decididamente o Miura no imaginário do grande público.

E para que conste: apesar do desfecho de cortar o coração, aquele Miura que rola ribanceira abaixo não era o original em que Bekermann encontra o seu destino frente a um buldózer da máfia… O “cálice sagrado dos automóveis”, como lhe chamou um dia a Top Gear, esteve desaparecido durante 46 anos, na posse de vários proprietários, mas foi adquirido o ano passado por dois empresários britânicos. Atualmente, está à venda por uma empresa inglesa especializada em clássicos. O preço não é revelado, mas o carro pode ser visto em http://www.cheshireclassiccars.co.uk/classic-cars-for-sale/1968

Um tour e um museu

O Miura, como resulta claro pela história que o acompanha, foi “O” Lamborghini. Aquele que deu a notoriedade à marca e a lançou definitivamente no imaginário da cultura automóvel. Isso e o sucesso comercial, claro. Não é, por isso, de estranhar que, para assinalar o aniversário, a Lamborghini tenha promovido um conjunto de iniciativas bem focadas naquilo que o Miura representa.

No início de Junho, a marca promoveu um Tour de 20 proprietários Miura, que percorreu mais de 500 quilómetros nas estradas da Emilia Romagna, Liguria e Toscânia (onde mais poderia ser?), ao mesmo tempo que, em Santa Agata Bolognese, era inaugurado o novo museu, agora totalmente orientado para uma melhor experiência dos visitantes.

O museu da Lamborghini, que pode ser visitado junto às instalações da fábrica, entre segunda e sábado, permite ainda, mediante marcação prévia, um “tour” pela linha de montagem dos modelos atuais.

Na inauguração do museu, Stefano Domenicali, CEO da marca, foi perentório: “A abertura deste novo museu, ao mesmo tempo que realizamos um tour comemorativo dos 50 anos do Miura, dá um sinal claro do nosso empenho em honrar a história da Lamborghini”.

A Audi, subsidiária do Grupo Volkswagen que detém a Lamborghini, envia também um sinal evidente: a marca de Sant’Agata Bolognese pode evoluir muito. Mas só fará sentido enquanto mantiver aquele ADN, aquela dose de irracionalidade, que deu origem ao Miura. E que a colocou na história para sempre.