#SalvarAsManuais: Uma noite de insónia, um 205 Xad e um boné Ferrari grande demais

22/11/2018

Há alguns meses atrás, em mais uma típica noite de insónia, dei por mim a deambular pelos confins de um qualquer semanário americano, onde se tornava interessante a argumentação. A temática, ao caso, era a “morte” das caixas de velocidades manuais.

Para quem segue a indústria automóvel e o alegre bailado de moda para um lado, moda para o outro, a notícia da morte das caixas manuais não haverá de ser bombástica, mas antes, e cá entre nós petrolheads, entristecedora. Ao ler a notícia (com o ponteiro mais pequeno já ligeiramente descaído), constatava o relato da “severidade” da situação, com uma percentagem cada vez menor a corresponder aos veículos com caixa manual (não olvidemos a ponderação de algumas marcas de parar com a incorporação de caixas manuais, no caso da Audi já a partir de 2019).

À medida que nos aproximamos de níveis elevadíssimos de condução autónoma, que as estradas se enchem, e que os limites de velocidade não reflectem as enormes melhorias de segurança e performance, salvar as caixas manuais parece a mais nobre das causas, acabando por o ser em toda a sua plenitude: preservar o último estilhaço de condução pura, já esquecido pela Ferrari, pelos Porsche com orientação competitiva, e pela população em geral, que acredita que as suas mãos direitas são melhor empregues com um batom, donut, ou telemóvel na mão.

Foi então que “desci” à zona de comentários. De ambos os lados da “barricada”, argumentos interessantes (e nisto já passava das duas da madrugada), alguns com o tal conhecimento inerente da Engenharia, outros da practicalidade ou maior à vontade com uma ou outra alternativa, existindo ainda quem expressasse opiniões derivativas do tão português “bitaite”. Bom, uma discussão de café, convenhamos.

Parei então, não para dar a minha opinião, mas antes para reflectir. Tendo já possibilidade de conduzir ambas as faces da moeda e os extremos dessas mesmas faces, compreende-se a perspectiva do facilitista. Lógico que estar parado no trânsito e andar dois metros de cada vez não é agradável ao nível muscular, mas se há certeza não renitente que possuo, é de que uma boa rampa à alvorada de Domingo, tudo cura.

Não há nada que mais gozo me dê do que, mesmo à redline, “subir” na altura certa, ou que mais concretização me logre do que produzir aquela redução que faz ribombar o conta rotações e controlar perfeitamente uma traseira mais fugidia, sentindo-se a mais pura conexão ao veículo através do perfeito sincronismo entre todos os membros (ao fim de pensar em alguns sustos, já batiam as três da manhã).

Conversas para velhos, dirão muitos. Talvez este velho de 24 anos saiba o quão irrisória seria uma manual num Chiron. Mas talvez não tanto num M2, e ainda assim, M2 com caixas manuais contam-se pelos dedos das mãos (só quem vê sabe a desilusão que me invade ao ver este desastre em plena Avenida: um M2 com caixa automática). Num cenário mais pessimista, talvez sejamos cada vez menos, os tais velhos da manual. É a única explicação para um futuro clássico como o M2 practicamente não ser vendido nesta variante.

Está para lá de discussão a eficiência das caixas DSG/PDK. Basta analisar a forma infalível como, em plena troca de velocidade, a potência é transferida às rodas motrizes em plena curva, algo consideravelmente mais complicado numa situação a 3 pedais. Mas não é exactamente aí que reside a verdadeira arte de saber conduzir?

Talvez seja simplesmente a vitória do facilitismo sobre a aprendizagem progressiva e domínio da técnica.

E foi aí que visitei um canto da memória ao qual já não regressava contam-se anos (parei de contabilizar as horas de sono possíveis por esta altura).

Recordo-me vivamente dos tempos do nosso “velhinho” 205 Xad… Era “só” um Xad, mas, para mim, era como se fosse um GTi. Recordo-me das tardes de capô aberto em que o meu pai me explicava as questões mais simples, desde os locais onde se inseriam os diversos fluidos, até às ligações eléctricas e componentes mais básicos da “baía de carburação”.

Recordo-me bem de o acompanhar enquanto fazíamos as estradas secundárias daquele tempo, em que me ensinou a “ouvir” o motor e a “meter outra quando ele pede”. Talvez venha daí a pertinácia na altura de “proteger as manuais a todo o custo” Talvez. Para essas memórias terem ficado vincadas na minha mente ao fim de 20 anos, é porque a influência na minha eterna loucura por tudo aquilo com motor começou ali, naquelas simples tardes em torno do Xad, no simples movimento de, com uma mão bem mais pequena do que a manete, boné Ferrari 5 tamanhos acima do apropriado, e assentamento firme no colo do meu Vatanenda altura, meter uma qualquer mudança “quando o motor pedia”, e de com olhos arregalados, covas nas bochechas, e sorriso de orelha a orelha, me deliciar com aquele nosso “GTi”.

Hoje em dia, não faço ideia onde parará o Xad, infelizmente. Motivos de força maior levaram à sua venda. Mas uma coisa sei ao certo, onde quer que esteja, e caso o espírito do automóvel (há de ser mencionado em toda a vez que me proponha à escrita livre) seja real, estará também ele de sorriso arregalado, por ter feito de um pequeno, um petrolhead, mas acima de tudo, um defensor eterno da pureza das manuais, sempre de manete na mão, mas agora já com capacidade para a envolver em torno desta.

Fez-se noite.

#SaveTheManuals

José Brito/Jornal dos Clássicos

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