Salvem a Lancia II

20/11/2018

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Até os menos atentos ao desporto automóvel associam a Lancia aos ralis. Os dez títulos mundiais, dos quais seis consecutivos, ajudam certamente a explicar isso. Mas se os ralis são de facto indissociáveis da Lancia, a marca de Turim também foi bem sucedida noutros campeonatos.
Paradoxalmente, apesar do seu passado de piloto de corridas, Vincenzo Lancia prefere concentrar-se na produção em série. Mas as qualidades e as inovações dos sucessivos modelos Lancia não passaram despercebidas aos pilotos, mais ou menos profissionais, que viram o potencial dos modelos Alpha (que venceu o primeiro Grande Prémio em que participou em 1908, nos EUA), Beta e sobretudo Lambda que, com a sua carroçaria monobloco, conquista várias vitórias de classe, nomeadamente nas Mille Miglia ou nas 24 h de Spa. Mais tarde, em 1936, a Lancia conquista os quatro primeiros lugares da Targa Florio!

Mas é preciso esperar pelo pós Segunda Guerra Mundial para ver um verdadeiro departamento desportivo, desde já graças a Gianni Lancia, filho do fundador entretanto falecido, que decide envolver a marca nas corridas, com a ajuda de Vittorio Jano, pai dos gloriosos P2 e P3 que trouxeram grandes vitórias à Alfa Romeo.

A participação nas competições começa com o novo Aurélia B10 e depois B20. Nas Mille Miglia de 1951, o B20 de Bracco e Maglioli equipado dum V6 de 2 litros chega a ameaçar a vitória do Ferrari 340 de Villoresi e Cassani com o seu V12 4,1 litros, acabando em segundo lugar. No mesmo ano, segue-se a vitória na categoria 2 litros nas 24 h de Le Mans, vitória que se repete em 1952, ano em que, a Lancia volta a dominar a Targa Florio com a conquista dos três primeiros lugares! O Aurélia B20 continuará ainda a ganhar outras corridas nos anos seguintes, já na versão GT, destacando-se a vitória no rali de Montecarlo de 1954.

Encorajada com estes sucessos, a recém criada Scuderia Lancia decide participar na categoria Sport, concebendo a barchetta D20 à qual se seguem a D23, vencedora do Grande Prémio de Lisboa de 1953 (seguida do Jaguar pilotado por Stirling Moss) e a D24 que vence a Carrera Panamericana no mesmo ano com a tripla Fangio/Taruffi/Castelotti, bem como a Targa Florio e a Mille Miglia no ano seguinte, com Taruffi e Ascari, respectivamente.

E já agora porque não a Fórmula 1? O salto para a categoria rainha dá-se em 1954 com o D50, um verdadeiro Lancia, ou seja, descaradamente inovador, com os depósitos colocados lateralmente, a integração do motor à estrutura e a colocação enviesada do V8 fazendo o eixo de transmissão passar ao lado do piloto, assim sentado mais baixo, melhorando-se assim a estabilidade. Apesar das performances alcançadas, os custos associados eram incomportáveis para a Lancia que, agora comprada por uma empresa de construção civil, viu os D50 (e Vittorio Jano) transitarem para a Ferrari. Prova do potencial desta máquina, é ao volante dum Lancia-Ferrari D50 que Juan Manuel Fangio conquista o seu quarto título em 1956.

Após um afastamento forçado por razões económicas, a Lancia volta às corridas com o pequeno Fulvia HF (por High Fidelity, clube de entusiastas da marca). É o início duma fantástica epopeia nos ralis ainda hoje recordada. O Fulvia, com as cores da “Squadra Corse HF” começa por vencer algumas provas, entre as quais o rali de Portugal de 1968, conquistando o título europeu em 1969 e 1973 e um título mundial em 1972 (ainda não se chamava Campeonato do Mundo de Ralis).

Sucede-lhe o Beta Coupé, mas a nova arma da Lancia nos ralis é outra e chama-se Stratos, equipada com o V6 Dino cedido pela Ferrari. Apesar de iniciar os testes em 1972, o Lancia Stratos só obtém a homologação para a época de 1974. A espera valeu a pena: o Stratos vence três campeonatos consecutivos em 1974, 1975 e 1976. Só a decisão da Fiat (agora dona da Lancia) de interromper o programa desportivo do Stratos, em benefício do 131 Abarth, é que impede este “ovni” de conquistar outros títulos. A última vitória do Stratos ocorre no Tour de Corse de 1981! Depois do domínio nos ralis, o Stratos é “reciclado” para a categoria GT, com algumas boas performances mas sem igualar o seu passado nos ralis.

Mas é ao Beta Montecarlo que caberá representar as cores da Lancia nos circuitos. E representará muito bem, pois impõe-se entre 1979 e 1981 no Grupo 5 categoria menos de 2 litros. Estas vitórias de classe motivam a Lancia, e sobretudo os dirigentes da Fiat a passar para a categoria superior com o LC2 ( LC1 teve um papel de transição) que, mostrando um certo potencial, nunca conseguiu superar o Porsche 956, mesmo com pilotos como Ricardo Patrese, Michele Alboreto, Alessandro Nannini ou ainda Bob Wolleck.

Mas se as vitórias no Grupo 5 estiveram na origem do LC2, também motivaram o regresso aos ralis em 1982 com o 037 Rally homologado para o novo Grupo B, que dá uma grande liberdade aos engenheiros, sendo a principal restrição a produção de 200 exemplares duma versão stradale. As épocas 1984 e 1985 vêm a luta entre duas filosofias: a tracção traseira do 037 contra a tracção às quatro rodas do Audi Quattro. A Lancia ganha o campeonato do mundo em 1983 mas percebe que o futuro passa pela tracção integral, que só virá com o Delta S4 em finais de 1984, ano em que o rival alemão sagra-se campeão mas em que a maior ameaça vem da Peugeot com o seu 205 T16.

De facto, o Delta S4 é rápido, estreia-se a vencer no RAC, mas não consegue vencer o 205 no campeonato de 1985. O ano seguinte, que podia ser o ano da conquista do título, acabou por ser o do fim do Grupo B (e com ele do S4) após a morte de Henri Toivonen e do seu co-piloto Sergio Cresto.

A partir de 1987, é a categoria A que constitui a elite do rali. E essa elite é agora dominada por um automóvel, hoje considerado lendário: o Lancia Delta Integrale. Foram várias versões (4WD, Integrale 8v, Integrale 16v e Integrale Evoluzione) e muitas vitórias, entre as quais o Rali de Portugal de 1990 em que monopoliza as cinco primeiras posições (Biasion, Auriol, Kankkunen, Cerrato e Bica)! Em 1991 a Lancia abandona os ralis mas não sem o Delta mostrar do que ainda era capaz, em 1992 sagrou-se campeão do mundo de ralis, com uma equipa não oficial.

Bruno Machado/Jornal dos Clássicos