#Save Lancia I

18/11/2018

Falar com entusiasmo da marca Lancia hoje em dia, é correr o risco de ser visto como alguma estranheza, sobretudo em Portugal, país onde a santa trindade germânica (Audi, BMW, Mercedes) reina no segmento premium. Quando muito, será recordado o Delta Integrale! Nada mais… apesar de ser uma marca incontornável na história do automóvel!

Desde já, porque a inovação é apontada como um desígnio da marca logo na sua fundação em 1906 por Vincenzo Lancia, antigo mecânico e piloto da Fiat. Assim, o primeiro modelo da marca, o 12 HP de quatro cilindros (depois designado por Alpha) dispõe dum chassis mais leve e mais baixo do que a concorrência, bem como duma transmissão totalmente inédita. Resultado: primeira corrida, primeira vitória, em Savannah (EUA) no ano de 1908!

Seguem-se o Dialpha de seis cilindros, o Beta (com um novo acelerador manual) e o Theta (35 HP) que será o primeiro sucesso comercial da Lancia muito graças à electricidade montada a bordo, pois é o primeiro automóvel europeu equipado dum motor de arranque (a manivela outrora indispensável passava a ser um mero acessório ocasional guardado na mala), de buzina e faróis eléctricos! A Primeira Guerra Mundial trava o sucesso do Theta, mais tarde designado por Kappa.

Durante a guerra, Vincenzo Lancia desenvolve um novo motor em V. Não sendo a inventora dessa arquitectura, a Lancia é no entanto pioneira na sua colocação em automóveis de série com o Trikappa, equipado por um V8 de 98 cavalos.

Em 1922, a Lancia simplesmente revoluciona a construção automóvel ao apresentar o Lambda dotado duma estrutura monobloco (chassis/carroçaria) garante de uma maior rigidez. Se referirmos ainda (entre outras inovações) os amortecedores hidráulicos reguláveis e o centro de gravidade particularmente baixo graças ao eixo da transmissão colocado dentro da estrutura e não por baixo, inútil será dizer que o comportamento na estrada domina largamente a concorrência, obtendo até alguns sucessos assinaláveis em competição apesar da sua vocação mais familiar e estatutária.

São ainda lançados modelos tais como o Dilambda, substituído pelo Astura pouco depois, o Artena muito utilizado pelos taxistas e sobretudo o Augusta que integra o tejadilho à estrutura monobloco.

Nos anos 30, Vincenzo Lancia tem a ideia de lançar um novo modelo, familiar mas mais acessível, na onda de massificação do transporte automóvel da época, à semelhança da Volkswagen. Dessa vontade nasce o Lancia Aprillia com inovações tais como as suspensões independentes, um motor V4 compacto e sobretudo uma linha particularmente aerodinâmica. O modelo apresentado em 1936 será construído até 1950. Infelizmente, Vincenzo Lancia não vê o sucesso da sua última criação, pois é vitima dum ataque cardíaco em 1937.

A década de 50 fortalece a imagem da Lancia enquanto marca de automóveis elegantes e sofisticados com o lançamento da gama Aurélia, constituída pela Berlina B10, o Coupé B20 e sobretudo o magnífico Spider B24 America que inaugura o primeiro V6 na produção em série. Seguem-se ainda o Flaminia (com destaque para o Coupé Super Sport Zagato) e o Flavia, mais acessível, que marca a adesão à tracção dianteira.

No salão de Genebra de 1963 é apresentado o Lancia Fulvia com um motor V4, travões de quatro discos e cuja versão coupé HF marcará o início da fantástica epopeia Lancia nos ralis.

Mas o fim da década é sinónimo de grandes dificuldades financeiras levando a marca a ser comprada pela Fiat em 1969. Nos anos 70 e 80 são lançados modelos com a elegância “fora da caixa” tipicamente Lancia (Beta HPE, Gamma Coupé) e modelos mais conservadores que partilham componentes do grupo como o Delta, o Y10, o Dedra ou o Thema (destacando-se a versão 8.32). Mas todos eles beneficiando com o prestígio conquistado nos ralis graças ao Stratos, 037 e claro Delta Integrale.

Precisamente: no início da década de 90 o programa de ralis da Lancia é sacrificado a favor do programa DTM da Alfa Romeo, entretanto comprada pela Fiat em 1987, e sem qualquer compensação (outro campeonato, veículo de imagem…). Este facto ilustra bem a política seguida desde então pelo grupo.

Há que dizer que a Lancia nunca foi um exemplo de rentabilidade. No entanto, não deixa de ser igualmente verdade que muitas decisões do grupo Fiat são questionáveis: o que devia ser o Fiat X1/20 (sucessor do X1/9) passou atabalhoadamente a chamar-se Lancia Montecarlo; o glorioso Delta lançado em 1979, só foi substituído em 1995 e sem direito a versão HF à altura do património desportivo da marca; o Fiat Coupé de 1994 podia ter sido um Lancia Coupé até porque o seu 2.0 16v Lampredi provinha do… Delta HF Integrale; o excelente Lybra não mereceu um design tão apelativo, como o 156 da Alfa Romeo; e o tão aclamado Fulvia Concept de 2003, não passou dum protótipo de salão. Já para não falar da clonagem dos modelos Chrysler… E mais recentemente, não teria feito mais sentido ter um SUV Lancia em vez de Alfa Romeo?

Quantas marcas se podem vangloriar duma história tão grande, cheia de inovações, de sucessos desportivos, de linhas intemporais? Não se entende, não se entende mesmo como é que os dirigentes do grupo FCA deixam morrer uma marca como esta…

Bruno Machado/Jornal dos Clássicos