Um Ford (RS) “picado” com um Porsche (Cayman)

06/05/2017

Pode uma curva fazer-nos ganhar o dia? Claro que sim! E não é bem uma curva. Na verdade são duas esquerdas unidas por um pequeno segmento de reta que podem, e devem, ser abordadas como uma única curva. Como é que estes 70 metros de alcatrão nos fazem ganhar o dia? Quando os atacamos numa esplendorosa manhã de inverno, antes de o Sol, ainda baixo, conseguir eliminar por completo os restos da humidade da noite. Perfeito!

A situação pede uma terceira bem puxada e é com ela no limite do red line, às 6500 rpm, que apontamos para a primeira esquerda. Não é preciso reduzir. Basta um aconchego ao travão para posicionar a frente. Muito direta, a direção dispensa grandes movimentos de volante. Não chega a precisar de um quarto de volta. O resto é acelerador. Surpreendendo pela progressividade ao longo de toda a faixa de utilização, o motor turbo de quatro cilindros impressiona pelo controlo no limite. Toda a curva é desenhada com o acelerador, mantendo a agulha do taquímetro entre as 5500 rpm e as 6000 rpm. Embalada pela solicitação do travão, a traseira deixou de seguir a frente para percorrer uma linha paralela.

Embora breve, a passagem pela pequena reta permite centrar a direção. Com o volante no ponto neutro e uma boa dose de aceleração lateral fechamos a segunda esquerda com o acelerador. Obediente, a traseira roda para alinhar o carro com a saída, sem barulho, sem excessos. Pura eficácia. Quarta. Acelera. Aponta. Trava. Reduz para segunda. Só quando abordamos o cotovelo seguinte é que nos apercebemos do momento memorável que havíamos acabado de viver. Ainda não eram dez da manhã e já tínhamos o dia ganho.

Tração integral, mas pouco

O Ford Focus RS… O Ford Focus RS? Com tração integral? A fechar curvas com acelerador e traseira a escorregar? Nem mais! A Ford transformou o novo Focus RS num dos melhores desportivos compactos do momento. Um concentrado de eficácia, com um potencial de diversão ao alcance apenas de um número restrito de iluminados. Quase todos versões especiais de corrida. Quase, porque há um modelo base, o mais barato de toda a gama do construtor, com lugar cativo neste clube. Só podia ser o 718 Cayman.

O “patinho feio” da Porsche, com vendas sempre inferiores, cerca de metade, às do irmão roadster, o 718 Boxster, mas a mesma alma desportiva. Mesmo com o motor base, de dois litros e 300 CV. Com o equilíbrio do motor central traseiro reforçado pela solidez do tejadilho, o 718 Cayman é o Porsche com o comportamento mais próximo ao do 911. No entanto, apesar do 718 Cayman estar disponível a partir dos 63 291€, a esmagadora maioria dos clientes de coupés Porsche prefere pagar um mínimo de 118 818€ pela versão base do 911 Carrera, com um boxer de três litros, seis cilindros e 370 CV.

A mesma curva. O mesmo dia. Mas mais perto da hora do almoço e com o piso totalmente seco. Desta vez, motor e tração, por esta ordem, estrondeiam nas nossas costas. Com a caixa PDK no modo manual e terceira a tocar no red line, nas 7500 rpm, não há necessidade de levar o pé esquerdo ao travão. Basta aliviar o acelerador.

Equilíbrio de massas

Com o peso concentrado entre os dois eixos e um motor mais progressivo do que explosivo, não é fácil vencer a aderência dos Pirelli P Zero 265/35 ZR20. Exige mais empenho do que com um 911, mas consegue-se. Sem motor atrás do eixo traseiro para provocar efeito de pêndulo, a recompensa surge de forma muito mais progressiva e controlada. O ideal, quando se procura apenas a eficácia. Andar de lado é muito giro, mas é um desperdício de tempo e pneus… totalmente justificado pelo bem que faz ao ego.

Não sendo alheia a esta realidade, a Ford desenvolveu um sistema de tração integral único. Recorrendo à vectorização dinâmica do binário, com uma embraiagem controlada eletronicamente de cada lado do diferencial traseiro, o Focus RS alia a velocidade elevada em curva a saídas explosivas. Desviando 70% do binário para o eixo traseiro e aí 90% para a roda exterior, o Focus RS sai das curvas de acelerador a fundo e em deriva controlada, ao melhor estilo WRC.

Não contente com a agilidade superior do Focus RS, a Ford criou um modo específico da gestão eletrónica para andar de lado, o Drift. A exemplo do que acontece quando se seleciona Track, o modo onde se consegue extrair todo o potencial do Focus RS, o painel de instrumentos alerta para a necessidade de se utilizar o modo Drift apenas em circuitos controlados. Temos de concordar. Pensado para acrobacias, o Drift agiliza a resposta da direção tornando-a mais leve. Funciona bem nas rotundas, mas a sensação de pneus dianteiros demasiado cheios criada pela direção torna-o traiçoeiro em estrada.

Launch control

Um comando ao lado do seletor da caixa permite variar entre os quatro modos de condução – Normal, Sport, Track e Drift. Embora esteja ao alcance rápido da mão direita, a seleção sequencial dos modos é lenta. Há um botão próprio para desligar o controlo de estabilidade por completo e, na haste dos piscas, um comando para selecionar o modo desportivo dos amortecedores de forma independente. Para não perder um milímetro no arranque, o painel de controlo disponibiliza a opção Launch control. Depois de selecionada, basta engrenar a primeira, acelerar a fundo e soltar a embraiagem. E, naturalmente, seguir a sequência da caixa manual de seis velocidades.

Acelerar a fundo e deixar a caixa fazer o trabalho só no Porsche. Com a PDK e o pacote Sport Chrono opcionais, o 718 Cayman rubrica o arranque até os 100 km/h em 4,7 segundos, passando o primeiro quilómetro ao fim de 24,7 segundos. Valendo-se da eficácia da tração integral a colocar a potência no chão e dos 50 CV a mais para compensar a diferença de peso, o Ford Focus RS não fica muito atrás. Cumpre o sprint em cinco segundos e completa o quilómetro em 24,9 segundos.

Comum aos dois blocos, a sobrealimentação é mais notória no Porsche. Entre as 3000 e as 5000 rpm, o 718 Cayman tem a resposta elástica caraterística dos motores turbo. Em condições normais não é preciso puxar muito mais, sendo possível fazer médias combinadas de 9 l/100 km. Sempre que a situação o exigir vale mesmo a pena explorar as últimas 1500 rpm. Quando se pensa que o boxer de dois litros já não terá muito mais para dar, o derradeiro fôlego dos 300 CV surpreende pela vitalidade e pela fidelidade às mais ligeiras ordens do acelerador.

Mais progressivo na entrega da potência, o bloco 2.3 EcoBoost do Focus RS nem parece sobrealimentado. Tem um novo turbo Honeywell de dupla entrada e alto rendimento, com um compressor de maiores dimensões, mas falta-lhe a “mola” dos médios regimes. O que é bom. Gosta de rotação e de trabalhar perto do limite do red line às 6500 rpm, como se de um motor atmosférico se tratasse. É, aliás, entre as 5500 e as 6000 rpm que melhor se controla a aceleração.

Um domínio perfeito do acelerador, que merece uma caixa com manuseamento mais preciso e escalonamento adequado à elevada rotatividade do motor. Num turbo tipo diesel, a segunda pode ser curta, porque a terceira tem força suficiente no regime médio para manter a aceleração. Neste 2.3 EcoBoost, com um saudável apetite por rotação, a segunda é demasiado curta e a terceira perde muito regime para ser opção. Nas zonas encadeadas é preferível sacrificar a entrada, mantendo a segunda perto do corte, para ter poder de fogo a seguir à travagem, do que subir para terceira e ficar pendurado nas 3000 rpm.

Enquanto os escapes desportivos rugem e explodem a cada passagem de caixa, com o Ford a soar como se tivesse um quinto cilindro, os discos tentam arrefecer antes da travagem seguinte. Em qualquer dos casos fazem-no com eficácia, deixando claro que só uma utilização regular e intensiva em pista possa justificar o investimento em soluções exóticas.

Chega e sobra

Se a lista de opcionais da Ford não contempla travões de cerâmica e não tem mais de uma dúzia de itens, nenhum imprescindível, a da Porsche preenche várias páginas e contém alguns elementos obrigatórios. Caixa PDK, suspensão ativa PASM, vectorização de binário com autoblocante mecânico ou pacote Sport Chrono, para citar apenas os mais importantes. O suficiente para empurrar o preço dos 63 291€ para perto dos 80 mil euros. É algum dinheiro, mas continua a não ser caro. Especialmente porque se trata de um dos melhores e mais equilibrados desportivos do segmento. Mesmo salvaguardando a diferença de preço, o topo de gama do Ford Focus, proposto por 49 527€, não consegue igualar o nível de qualidade do habitáculo do Porsche. Compensa com o equipamento mais completo e com a versatilidade das cinco portas. Afinal, o RS é tão funcional no dia-a-dia como qualquer outro Ford Focus. No modo Normal a suspensão não é demasiado seca, nem o escape barulhento. Só a direção é que, para ser rápida e comunicativa em condução desportiva, tem uma brecagem muito limitada para as manobras de estacionamento. E, com uma média ponderada de 10,1 l/100 km, gasta mais que o Porsche. Ainda bem que isto não é um comparativo.

TEXTO: RICARDO MACHADO/FOTOGRAFIA: VASCO ESTRELADO

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