“Não somos, de todo, anti-Mobi.e”, garante nova associação AMME

24/02/2022

Passou a haver uma nova associação que reúne utilizadores de veículos elétricos. A Associação para a Modernização da Mobilidade Elétrica (AMME) surge com três grandes objetivos: bater-se pelo fim da obrigatoriedade do uso da rede pública Mobi.e (Entidade Gestora da Mobilidade Eléctrica); conseguir que quem pretenda vender energia para carregamento de veículos elétricos possa utilizar uma infraestrutura própria para esse efeito, nomeadamente os seus próprios sistemas de autenticação, carregamento e pagamentos, sem ter que cumprir com a atual integração obrigatória à Entidade Gestora da Mobilidade Elétrica (EGME); e redefinir a classificação dos espaços que têm postos e as suas obrigações.

 

O Welectric entrevistou Hugo José Pinto, porta-voz da associação, para quem o sistema em que assente a mobilidade elétrica em Portugal “foi pioneiro e exemplar quando foi lançado, mas hoje coloca-se no caminho contrário ao do progresso”.

Hugo Pinto vê o sistema de gestão da mobilidade português “anacrónico, desproporcionalmente complexo e único no mundo”, não fazendo sentido – na sua perspetiva – a obrigatoriedade da ligação à rede pública.

O facto de os dois pontos defendidos pela AMME serem coincidentes com as pretensões de dois players do mercado (da Tesla e da Sonae/Continente), levou-nos a questionar Hugo Pinto sobre a colagem da AMME a estas empresas. Hugo Pinto procura afastar essa imagem, garantindo que os objetivos pelos quais a associação se bate poderão beneficiar o crescimento da mobilidade elétrica em Portugal, ao abrir o mercado e despertar a atenção de outros players para terem negócios em Portugal.

Welectric (W): A AMME é uma associação composta por muitos proprietários de Tesla?
Hugo Pinto (HP):
Esforçamo-nos para que não e queremos ser cada vez menos. A nossa associação não pretende de todo focarmo-nos nos problemas dos proprietários dos Tesla. Por acaso, três dos membros fundadores da associação são proprietários de Tesla. Todavia, o problema que pretendemos resolver não é de todo um problema Tesla. É um problema que também impacta a Tesla, mas nós achamos que é um problema que impacta a maioria de utilizadores em Portugal que é o facto de que, hoje em dia, a única forma de aceder e carregar um veículo elétrico é através de uma rede pública única, o que pressupõe a obrigatoriedade de participação de todos os operadores económicos, e há soluções, como as do Continente, mas também a da própria Tesla que são, na verdade, soluções que estão num terreno muito cinzento da lei e que não possibilitam de uma forma clara que não seja cobrada energia para a mobilidade elétrica. Nós queremos clarificar isso para que não apenas esses operadores, mas também todos os outros operadores possam ter acesso a soluções completamente diferentes das que existem agora e mais flexíveis.

 

W: No fundo, redes privadas que não precisem de estar ligadas à rede pública: é isso que pretendem?
HP:
Sim. Imagine situações do estilo em que alguém faz compras cruzadas e o cartão do Continente para este efeito é um bom exemplo, tal como o da Tesla, em que compra uma coisa do lado e eles oferecem-lhe o carregamento do outro; ou tem um contraponto com um clube de amigos. Seja o que for, que haja uma comercialização e disponibilização de energia que não seja mascarada (nós não gostamos de subterfúgios), mas fora da rede pública.

Nós achamos que o que está na via pública deve manter em absoluto o acesso universal. Achamos é que o operador que esteja num terreno privado e que não esteja ligado à rede pública deve poder fazê-lo de forma legal.

W: Defendem a coexistência de dois sistemas, um privado e um público?
HP: Será mais a coexistência de “n” sistemas. Nós não somos de todo anti-Mobi.e, nem de perto nem de longe. A Mobi.e é uma rede pioneira e tem um conjunto de mais valias nomeadamente a forma de identificação do utilizador que deve ser mantida. Se a Mobi.e tem um valor intrínseco no mercado, entendo que esse valor vai ser suportado pela procura dos seus utilizadores, sem grande drama.

W: Neste momento, olhando para a realidade portuguesa, que operadores têm interesse em poder avançar para uma rede privada? Temos a Tesla, temos o Continente…
HP: Temos a Tesla, temos os operadores que querem fazer ofertas diferenciadas conforme as marcas associadas, como é o caso também da Ionity. Temos obviamente as redes de supermercado, temos os operadores estrangeiros europeus com redes integradas europeias que não entram em Portugal por causa da legislação. Portanto, creio que todos eles acabam por se poder juntar a este bouquet, mas também temos associações privadas que possam fazer ecossistemas seus e colocá-los disponíveis para membros seus (sem terem de andar em subterfúgios de cobrar tempo ou cobrar lugares de estacionamento) e portanto cobrar energias. Isso é benéfico para eles, flexibiliza o modelo, mas é benéfico também para o Estado porque reconhece diretamente a venda como uma venda de energia e não a mascara como uma venda de tempo ou de lugares de estacionamento e torna o modelo mais flexível e mais “limpo”. Nós gostamos de simplificar e, portanto, um dos nossos motes é modernizar e simplificar algo que, hoje, parece relativamente complicado e não deveria ser.

W: Fica-se com a ideia de que este movimento surge muito também mediante as necessidades e até os problemas que a Tesla tem tido ao nível do licenciamento dos seus últimos Supercarregadores…
HP: Eu sei que é quase uma tentação colar o modelo que estamos a propor aos supercarregadores da Tesla. Nós esforçamo-nos muito por não o fazer até porque não temos conhecimento, uma vez que estamos a falar de negócios privados e de contratos privados, sobre o que efetivamente impede, ou não, a abertura dos supercarregadores; creio que poderá não ser exclusivamente o detalhe de tentar ligar ou não à rede publica. Todavia, é um problema que também seria resolvido sem dúvida alguma ou que, pelo menos, seria ajudado com a desobrigação de ligação à rede pública dos operadores económicos que tentam fornecer, nomeadamente a Tesla. No entanto, nós não somos os maiores fãs de colar muito seja o nosso discurso, seja a resolução do problema à questão da Tesla porque apesar de eu, pessoalmente, ser um condutor Tesla, creio que o problema é mais amplo e mais vasto do que apenas os carregadores da Tesla estarem fechados ou não.

W: De momento quantos membros é que já conseguiram reunir?
HP: Neste momento estamos a abrir as inscrições. Pré-inscrições, neste momento, temos para lá do meio milhar [desde domingo, à noite, n.d.r.].

W: E esse meio milhar será 90% Tesla, para já?
HP: Não, de todo, muito pelo contrário. Com a estatística que já temos, eles vêm de todos os grupos de mobilidade em Portugal.

W: Ou seja, há donos de veículos elétricos de outras marcas?
HP: Nós próprios, nos membros fundadores, temos donos de BMW, de VW, por exemplo, e, portanto, todo o conceito da colagem ao mundo Tesla é algo que nós queremos muito evitar porque senão não merecia a constituição da associação como não merecia a iniciativa em si.

W: A SONAE manifestou já vontade de ter uma rede própria de carregamento. Chegaram a falar com eles para poderem acolher as pretensões deles, para eles próprios vos darem algum tipo de apoio?
HP: Posso dizer-lhe que encetámos contactos com a vasta maioria dos potenciais interessados neste tipo de iniciativa, não vou nomeá-los agora, mas também deixe-me acrescentar que a iniciativa não é moldada especificamente às necessidades de nenhum. Aliás, eu creio que a iniciativa e as nossas propostas deixam toda a gente ligeiramente insatisfeita, mas são muito melhores do que o status quo atual.

W: Ligeiramente pior em que aspeto?
HP: Toda a gente pretendia uma solução defendendo os interesses de cada um, todos beneficiariam de soluções que fossem feitas como “fato de alfaiate”, à medida, e não temos uma proposta que seja feita à medida especificamente de ninguém.

W: Como é que olham para a Mobi.e e se relacionarão com a entidade gestora?
HP
: Queremos falar com eles. Nós temos uma postura de aproximação em três fases, basicamente estamos a criar representatividade neste momento e estes primeiros dias são de criação dessa representatividade. Temos ambição de associação, senão mesmo da maior associação de condutores de veículos elétricos em Portugal, vamos ver se conseguimos. Queremos representar muita gente, muitas marcas e, portanto, este é o nosso primeiro passo. O segundo passo é: queremos falar com os interlocutores oficiais e, obviamente, temos de falar com as entidades reguladoras e com a Mobi.e e com as nossas instâncias governativas. Vamos apresentar-lhes propostas concretas com legislação concreta com redações concretas muito simples de entender, muito pragmáticos.

W: E como é que se colocam face à UVE, a atual associação de utilizadores de veículos elétricos?
HP: Eu gosto pouco de falar dos outros. Eu creio que a UVE tem feito um trabalho fantástico de promoção da mobilidade elétrica em Portugal e, portanto, gostava muito que a UVE alinhasse muitas das suas propostas com propostas que estamos a apresentar agora. Creio que a aproximação da UVE ao modelo é mais coincidente com o modelo existente atual do que com a nossa proposta, portanto nós optámos por criar uma associação própria. Creio que a UVE terá o seu caminho a fazer e não me cabe a mim, de todo, nem de perto nem de longe, opinar muito sobre o que é que deverão ou não fazer.

W: Estão a contar com todos esses parceiros que nomeou (a Tesla, a SONAE, a Ionity) para “jogarem a vosso favor” para tentarem acrescentar essa possibilidade de carregamento que defendem? Estão a contar com essa ajuda?
HP: Nós não achamos correto, nem queremos ter uma iniciativa da associação suportada pela indústria ou dependente da indústria como forma de colocar as iniciativas. Portanto, quem se queira juntar a estas iniciativas e quem queira suportá-las de forma, mais ou menos formal, agradecemos esse suporte. Não dependemos de nenhuma dessas empresas para o nosso ciclo de vida, nem para aquilo que vamos fazer agora de seguida, portanto agradecemos se nos quiserem apoiar mas nós não vivemos disso nem o ambicionamos.