Do inferno da fronteira à festa das mulheres no Nepal

31/01/2017

Dia difícil mas extraordinário. Ontem à noite comi qualquer coisa que me fez mal. Tenho a impressão que foi quando furei a regra que tinha imposto a mim próprio de só comer produtos cozinhados ou fruta descascada por mim ao pedir um sumo natural de “sweet lemon” para acompanhar o jantar.

Tinha posto o despertador para as 8 porque previa 400 Km difíceis, incluindo uma passagem de fronteira, até Katmandu. Custou-me a levantar e só consegui sair às onze e meia, quando me comecei a sentir melhor. Ontem tinha sido complicado ligar a internet. Quando requeri a ajuda de alguém à recepção do hotel, mandaram-me primeiro um miúdo que mudou a configuração do modem no meu computador sem conseguir resolver o problema e mais tarde um “expert” que, segundo eles, só atendia casos extremos depois do miúdo não se safar, que resolveu o assunto em dois minutos.

Só que fiquei sem acesso aos meus mails e ao site do meu banco.

Estranhei mais quando de manhã, ao ligar o computador, me apareceu uma mensagem a dizer que o Id do meu computador estava a ser partilhado com outro. Para além disso não conseguia aceder à internet. Fiquei preocupado e chamei rapidamente o miúdo para mudar a senha do meu computador, o que ele fez rapidamente. Entrei nas minhas contas bancárias e ainda não tinha sido assaltado.

A cidade em que fiquei, no norte da Índia, Gorakhpur, é grande, mas compacta com muito movimento nas ruas estreitas, muitas delas em terra. Saí pelo meio dos “rickshaws” e bicicletas, aqui em maior quantidade que nas cidades mais civilizadas, a caminho da fronteira com o Nepal, a cerca de 100 Km. Tinha esperança de encontrar uma via, das que eles chamam autoestradas, em tão bom estado como a que me tinha levado até ali, de modo a conseguir percorrer os 400 Km que me levariam a Katmandu, mas infelizmente a realidade que me esperava era bem diferente. A estrada era não só muito esburacada  como atravessava aldeias quase intransitáveis no meio de muito pó e movimento.

A “CrossTourer” levou uma grande sova e, com as vibrações, começaram mesmo a  saltar alguns dos parafusos que seguram os plásticos laterais.

A fronteira da Índia com o Nepal parece um filme. Comecei por passar por uma fila interminável de muitas dezenas de  camiões para, cerca de um quilómetro à frente, um tipo com ar ocidental me chamar quando atravessava a aldeia para indicar o escritório onde me deveria dirigir e carimbar o passaporte.

Se não fosse a placa à porta não acreditava que se tratava de um local oficial. Estavam perto de 40º e todos suávamos. O mesmo homem propôs-se ir comprar-me uma água “dê-me 20 rupias”. Voltou com uma garrafa de água morna e a seguir sugeriu que deveria trocar dólares numa loja em frente que no Nepal levariam mais caro. Desconfiei mas aceitei trocar 100 dólares contra vontade do amigo dele que insistia que eu trocasse 300, que 100 “não me chegariam para nada”. Fiquei-me pelos cem e obviamente confirmei depois no Nepal ter sido aldrabado.

Depois de carimbar o passaporte passei para um escritório do outro lado da rua, 50 metros à frente, onde guardas adormecidos acabaram por carimbar o Carnet da moto, depois de sacarem uma caixa com carimbos e um livro de registo de cima de um monte de sacos que não sei o que conteriam.

Passei então para a fronteira do Nepal. Os guardas que estavam do lado esquerdo da estrada indicaram-me uma pequena casa do outro lado da rua. À porta um homem dormia deitado num banco, mas o letreiro fixo na parede indicava que estava no sítio certo. Trataram-me do visto na hora. Um painel na parede escrito à mão indicava os preços. Fiquei-me pelos 25 dólares do visto de quinze dias. Preparava-me para seguir viagem quando uns guardas, sentados numa banca à beira da estrada, me mandaram parar. Pediram-me o passaporte e o Carnet da moto.

Um homem com ar entendido olhou para o Carnet e mandou-me ir ter com um colega dentro dum escritório adjunto com grades nas janelas. Este fez um ar de não saber o que aquilo era e chamou o primeiro que entrou no escritório, recolheu um enorme livro  de cima de uma estante, bateu com ele contra uma mesa para sacudir o pó e abriu-o com cuidado para as páginas soltas não caírem.

Pediu-me que preenchesse a primeira linha livre com nome, número de passaporte e matricula da moto, carimbou o Carnet com um carimbo que me pareceu ser tirado à sorte de um “tupperwear” cheio deles, chamou um tipo dos seus trinta anos com ar de chefe e camisa às flores para olhar para a moto e, depois de dez minutos de observação, mandou-me seguir viagem.

O Nepal é muito diferente da Índia. Tanto a nível de paisagem como de população. Quando tive que fazer umas fotocópias para o visto, o miúdo que me atendeu tinha um ar oriental e perguntei-lhe de onde era. -“Do Nepal”, respondeu-me. E os teus pais, de onde são?  “Do Nepal”. Só quando entrei no país constatei que muitos deles são de raça oriental e a mistura com a raça indiana originou raparigas lindíssimas.

Por estar perto dos Himalaias e já ser um país tropical tem muita vegetação com florestas muito densas. Mal entrei na parte mais montanhosa a paisagem tornou-se totalmente verde.

Vinha numa grande recta, cerca de 100 Km depois da fronteira, ainda com a ideia de chegar a Katmandu ao final da tarde, quando a câmara GO Pro, que tinha fixa na parte da frente da moto voou, por o suporte se ter partido, depois do esforço por que passou nas esburacadas estradas do norte da Índia. Parei a moto e fui à procura da câmara. Durante uma hora desbaratei a densa vegetação junto à estrada, de início acompanhado por dois camionistas que vinham de mudar uma roda e a quem pedi ajuda mas …. nada.

O fim de  tarde chegava e, sem querer viajar de noite, decidi abandonar as buscas e tentar encontrar onde dormir ali por perto para as retomar no dia seguinte. Parei numa aldeia perdida no meio da floresta onde só as crianças com menos de doze anos falam bem inglês e alguns dos jovens nos seus 20 arranham alguma coisa.

Ao procurar onde ficar, de um lado e outro da aldeia, atirado pelos moradores como bola de ping pong indicando onde pensavam que alguém alugava um quarto, acabei por ficar numa casa onde o rapaz me sugeriu que visse o quarto antes de tomar uma decisão. Entretanto, no vai e vem de um lado para o outro da rua, tinha deixado cair a moto ao dar a volta numa estrada de terra solta com um degrau. Um rapaz veio logo ajudar-me e em menos de um minuto a “CrossTourer” estava novamente a mover-se pelos seus meios.

O quarto tinha três camas montadas em U com umas colchas por cima e almofadas sebentas que de tão duras pareciam feitas de madeira. No meio do U não haviam mais de dois metros quadrados livres. Uma grande janela com um rendilhado em madeira, virada para a estrada, não fechava. “Não têm luz?” “Não. Só a partir das nove da noite”. No Nepal não produzem eletricidade suficiente para alimentar todo o país, de maneira que é racionada, ao longo do dia, entre as cidades e vilas. Quando perguntei se havia maneira de tomar um duche indicaram-me um cubículo em cimento que, de tão sujo, não se distinguiam as paredes do chão, da torneira e do duche. Disse que achava tudo óptimo e o rapaz pediu-me o equivalente e quatro euros pela estadia.

Quando tomava duche, montado nos meus imprescindíveis chinelos, deixou de correr e acabei por tirar o sabão que ainda tinha no corpo com a ajuda de uma torneira que estava à altura dos joelhos.

Na esplanada deste hotel, onde eu era o único hóspede, alguns amigos do dono conversavam de volta da única mesa, em plástico encarnado queimado pelo sol. Enquanto bebia uma cerveja  naquele local de reunião perguntei ao jovem proprietário do Hotel onde poderia guardar a moto durante a noite e ao sugerir-me que entrasse com ela por um corredor estreito, um dos amigos, chefe da polícia local, ofereceu-se para que a deixasse frente à esquadra.

Aceitei a proposta e fui com a moto, por uma estrada de terra, até um descampado protegido por uma cancela fabricada com um rolo de arame farpado. Do outro lado uma guarita em tijolo solto, sacos de areia e telhado de zinco, parecia ter sido feita à pressa para defesa de um ataque surpresa. Uma cabana com telhado em colmo, à porta da qual estacionei a moto, era a dita esquadra. O chefe ordenou a um homem de fato camuflado e metralhadora em punho que ficasse junto a moto. E ali ficou ele … a noite toda.

Votei para o hotel onde o dono me preparou um jantar. Uma sopa a que chamam Dal e não sei do que é feita, espinafres cozidos, um bloco de arroz seco em forma de pudim, pão do tipo “zapati” três mini bananas e uns quartos de maçã.

A mulher, uma miúda linda de 25 anos que parecia ter 18 e a quem antes perguntara se era irmã do filho, limitava-se a tratar de si, talvez por amanhã ser, aqui no Nepal, o festival da mulher em que todas elas se arranjam com vestidos lindos.

Depois do jantar os amigos do dono propuseram-me ir dançar a uma das festas de rua da aldeia que já festejava o dia da mulher. Lá parti com eles através de uma rua de terra escura até um largo com uns bancos corridos e uma aparelhagem de som alimentada não sei como. Dançámos alegremente, só os homens, sob o aplauso das raparigas e pelas onze da noite voltei para o hotel. A temperatura não baixava dos 30º. Estendi-me numa das camas vestido, com a almofada forrada por uma das minhas “t-shirt”.

Cinco minutos depois estava a dormir.