Não me perguntem porquê, mas, para mim, o lugar dos cronistas é o do morto. Todos temos o nosso espaço dentro da composição do automóvel. E quem opina, por natureza, até pode ter uma vista privilegiada sobre a estrada, mas nunca chega a deitar as mãos ao volante. Pode ter muitas outras responsabilidades, mas apenas por má vontade se poderá acusar um simples cronista de perder a direção ou de levar-nos por maus caminhos.
“O lugar do morto”. Expressão equívoca e que dá título a uma crónica que também poderia chamar-se “contramão”, que a iminência do acidente seria idêntica. Por aqui, não se esperem, portanto, respostas para as grandes questões do meio automobilístico ou rodoviário. Quanto muito, mais umas quantas interrogações e uma ou outra irritação. Há quem escreva crónicas com o propósito de convencer o mundo das suas opiniões. Talvez de mudá-lo. Em “O lugar do morto”, pelo contrário, procurarei apenas convencer-me a mim. Já de si, uma tarefa complexa o quanto baste.
Um pequeno enquadramento histórico. No filme de António Pedro Vasconcelos, de 1984, com o mesmo nome, com Ana Zanatti, Pedro Oliveira e um sensual capot como protagonistas, o defunto que dá mote ao enredo, adiante-se, por mera curiosidade, é encontrado não no lugar que lhe seria devido, ao lado do condutor, mas no banco traseiro. Expressão equívoca, lá está. E baseada num passado longínquo. Numa época em que os cintos de segurança não eram obrigatórios por lei e onde era comum o “pendura” sair projetado pela janela, com uma taxa de mortalidade, em caso de sinistro, a rondar os 100%. Hoje, tudo mudou. O lugar do morto é ao volante. É onde mais se mata e mais se morre. Ou não sejamos, tantas vezes, condutores solitários na estrada. E não é como reza o adágio popular? Não morreremos nós sempre sós?
Recuando a esses anos, algures perdidos na década de 70, o meu lugar na estrutura do Ford Taunus do meu pai era no banco de trás. Ao meio, porque os bancos à janela eram ocupados pelos meus irmãos, ambos mais velhos e com posição já consolidada no seio da família. Era o mais desconfortável de todos. Mas era o único com plena visão para a frente e para trás. O futuro e o passado estavam ali, à disposição de um golpe de cabeça. Ainda hoje fico ligeiramente enjoado quando olho para os lados.
Na estrada como na vida, para não dizer na estrada da vida, o acidente é sempre de quem conduz. Os outros, todos nós, simples passageiros de um veículo em marcha, mandamos palpites, como quem tentar indicar o caminho do mundo, quando mal damos com a direção para casa.