O que o coronavírus não mata

18/03/2020

A fábrica da PSA, em Mangualde, e a da Renault, em Cacia, fecham hoje as suas portas. Uma informação redundante, dado que todas as unidades fabris estão a suspender as suas linhas de produção. Mais tarde ou tarde demais. Estas são decisões inadiáveis e com prejuízos financeiros ainda difíceis de calcular, até porque somam às dificuldades que a indústria automóvel sentia já com a entrada em vigor da norma europeia das 95 g/km e com as coimas previstas para 2021 – impõe-se, inclusivamente, a questão: perante a pandemia, não seria de rever estes prazos?

O atual estado na Nação obriga a repensar o que tínhamos por certo. O que pensávamos ser. E o que queremos ser. Entre as leituras que tenho feito, durante a quarentena, tropecei num pensamento de Yuval Noah Harari, no seu best-seller “Sapiens, História Breve da Humanidade”.

“Em que sentido podemos dizer que a Peugeot SA (…) existe? Há muitos veículos, mas estes não são, obviamente, a empresa. Mesmo que todos os Peugeot do mundo fossem abatidos ao mesmo tempo, a Peugeot SA não desapareceria; continuaria a produzir automóveis novos e a emitir os seus relatórios anuais (…)”, pode ler-se na obra. É certo que a empresa detém também secretárias, engenheiros, administradores, mas isso “não faz a Peugeot SA”. E quem diz a Peugeot SA diz o Groupe PSA ou outro grupo ou fabricante automóvel – ou de outra área.

“Mas mesmo que um desastre” – ou um vírus, acrescento – “destruísse tudo, a marca poderia pedir dinheiro, contratar empregados novos e recuperar as fábricas (…)”. Não é também essa a sua essência. É preciso ir mais longe na história. “Tal não significa que a Peugeot SA seja invulnerável ou imortal. Se um juiz ordenasse a dissolução da empresa, as suas fábricas permaneceriam de pé e os seus trabalhadores, contabilistas, administradores e acionistas permaneceriam vivos – mas a Peugeot SA desapareceria de imediato. Em suma, a Peugeot parece não ter qualquer ligação essencial ao mundo físico. Será que existe realmente?”, questiona Yuvak Noah Harari. Como recorda o autor, todas as empresas são “construções coletivas”, uma espécie de “ficção legal”. Por outras palavras, “não se pode apontar o dedo porque não é objeto físico. Contudo, existe como entidade legal”, acrescenta.

Durante séculos, milénios, a propriedade só podia ser detida por seres de “carne e osso”. No século XIII, por exemplo, se um negócio de venda de carroças corresse mal, propõe o autor, “a ruína seria do próprio responsável. Com a evolução dos tempos, as empresas começaram a ganhar uma independência legal em relação aos seus fundadores. E o melhor exemplo foi o do próprio Armand Peugeot, em 1896. Nessa época herdou dos pais uma fundição de aço, que produzia molas, serras e bicicletas. E depressa decidiu entrar de cabeça no negócio dos automóveis, estabelecendo uma sociedade de responsabilidade limitada. Uma solução que o salvaguardava, individualmente, caso um modelo produzido por si avariasse. A responsabilidade seria da Peugeot, seu apelido, não sua. “Morreu em 1915, mas a Peugeot continua viva e se saúde”, explica o autor.

Neste contexto, o fecho das fábricas e a forma como as empresas enfrentam o covid-19 ganha contornos especiais. “Primeiro protegemos os colaboradores e depois o negócio”, disse-me Jorge Magalhães, diretor de Comunicação do Groupe PSA em Portugal. Devia ser uma evidência. Uma não questão. Mas não é. Para muitas empresas, por enquanto, tal não é assim tão claro. E aguardam por uma declaração de estado de emergência para dar ordens para proteger os seus funcionários.

Voltando ao início. Uma empresa, qualquer que seja, poderá ter a sua existência plasmada num documento legal. Mas a sua real existência será sempre outra. E nada será sem o seu capital humano. Será preciso um documento – ou decreto presidencial – para o recordar?