Piloto multifacetado e com uma abertura de espírito pouco comum entre os seus pares, André Negrão integra este ano a equipa da Alpine no Campeonato do Mundo de Endurance (WEC), ajudando a equipa gaulesa a dar os seus primeiros passos na categoria rainha da resistência, a Hypercar. Na passagem da modalidade por Portugal, em Portimão, o piloto paulista deu a conhecer a sua visão sobre o novo desafio do WEC e como o trabalho de equipa se sobrepõe, em todas as dimensões, ao individual.

Com um passado ligado aos monolugares, sobretudo à GP2, modalidade antecessora da atual Fórmula 2, André Negrão é hoje um dos nomes mais conceituados das corridas de resistência, tendo já vencido as 24 Horas de Le Mans por duas vezes, na categoria secundária LMP2 (da qual foi também campeão na super-temporada de 2018/2019).

Em 2021, ascende à categoria máxima aproveitando a reformulação das regras da modalidade e o compromisso da Alpine para com a mesma. Atualmente, divide o seu Alpine A480 LMP1 com os franceses Matthieu Vaxivière e Nicolas Lapierre, apontando, desde logo, alguns dos desafios inerentes à modalidade como a gestão da temporada em função dos resultados e do ‘BoP’ (‘Balance of Performance’), que faz um acerto de potência e peso de cada carro consoante os seus resultados em cada corrida.

“Sempre que acabamos no pódio em cada corrida, os carros ‘engordam’ e perdem potência. Temos de pensar nisso. Pensamos sempre em Le Mans que é a corrida mais importante para nós e para todos os que estão no campeonato e pensamos, com estas novas regras, se será que é melhor fazer um terceiro lugar agora ou um primeiro lugar e ganhar mais peso ou fazer um terceiro lugar e ‘salvar’ o carro para a próxima corrida e ‘salvar’ o carro para Le Mans que é onde precisamos de um carro competitivo. Temos todas estas regras, estas jogadas novas para fazer. Não é só pôr pneus novos e combustível e fazer a corrida”, explica André Negrão, que falou com os jornalistas ainda antes da corrida de Portimão do WEC, para a qual fez a pole position, terminando a corrida em terceiro lugar.

Porém, enquanto piloto de resistência, um dos pontos mais importantes é a gestão do ritmo de corrida de forma a ter em conta a fiabilidade e a ‘saúde’ do carro, sobretudo quando se fala numa prova de 24 horas, como é a de Le Mans, mas que também é decididamente importante em corridas como a de Portimão, com a duração de oito horas.

“Para nós, pilotos, essa é a parte mais difícil – ter de ficar a segurar [o andamento] em momentos em que sabemos que podemos ir mais rápidos mas em que não podemos. Porque temos sempre de pensar não no final, mas talvez em horas mais importantes que ainda vão chegar. Essa é a pior parte. Em especial, em Le Mans. Isso acontece muito em Le Mans porque ficamos sempre a pensar em guardar o carro para o final… Não posso passar nos corretores, não posso bater, não posso fazer muita coisa e temos sempre de pensar nos companheiros que fazem equipa comigo. Isso é uma coisa que muda muito de um piloto que vem de um fórmula, como eu, para a Endurance. Porque aqui faz-se a divisão do carro com mais dois pilotos. Num monolugar de fórmula é só você… se você bater ou estragar o carro a culpa é sua e só faz mal para você. No Endurance, em que se trabalha em equipa, não posso estragar o carro, porque o próximo piloto vai queixar-se de que estraguei os pneus ou bati com o carro”, atira o piloto da Alpine ELF Matmut.

O problema que os regulamentos têm de resolver

Uma das principais preocupações de todos os pilotos que competem na classe principal do WEC, a Hypercar, neste momento apenas composta pelos dois Toyota, pelo Alpine e pelo recém-chegado Glickenhaus, é a da proximidade de ritmo com os LMP2, classe secundária que, ao abrigo dos novos regulamentos para a classe principal, se aproximou vertiginosamente na pista. E até mesmo os GTE ganharam mais velocidade, numa circunstância que os regulamentos também tenderão a resolver.

“Antes, em 2018, 2019 e 2020, a diferença entre os protótipos e os GTE era muito maior. Como veio a nova classe Hypercar, em que os carros são dez segundos mais lentos, todos tiveram de se ajustar para não poderem ultrapassar esses, incluindo os LMP2 e os GTE, pelo que os carros ficaram muito mais lentos. O LMP1 que eu guio hoje é o LMP2 que eu guiei no passado, porque perdemos 80 CV e 500 kg de pressão aerodinâmica e então ficou um carro pior, mas por causa desse novo regulamento. Não é que o carro seja mau, mas o regulamento obrigou à adaptação dao carro”, começa por indicar.

“O que acontece é que ainda não se conseguiu reduzir o ritmo dos LMP2. O que sabemos é que durante a corrida, o pneu deles é muito ruim, porque se tivessem o pneu que tínhamos em 2020 não íamos conseguir ultrapassá-los e era capaz até de ganhar um LMP2 na geral. Mas, pelo facto de terem um tipo de pneu pior e um tanque de combustível menor, conseguimos fazer mais voltas na pista e isso acaba por salvar um pouco a corrida. Mas, 2021 e 2022 ainda são anos de transição, porque os Hypercars novos só vão entrar em 2023. O campeonato vai ter uma cara nova com a entrada de marcas como a Porsche, Audi, Ferrari, Peugeot e Cadillac…”, assume, explicando também que os desenvolvimentos destes dois anos serão pouco relevantes para o carro de 2023, “porque o carro para 2023 será totalmente novo, com chassis novo e motor novo, que deverá ser um derivado da Fórmula 1 – híbrido turbo V6, acredito eu”.

Ainda assim, há benefícios deste envolvimento na modalidade desde já, sendo “bom para a equipa porque há uma aprendizagem e é bom fazer parte desta nova engrenagem. Mas o carro vai ser totalmente novo e teoricamente tem de começar a testar para o ano, porque é preciso provar as coisas, como a parte de eletrónica que é muito complicada e que mais problemas dá, do motor e dos travões”.

Uma vez que a corrida das 24 Horas de Le Mans é aquela que mais atenções concentra ao longo da temporada, a preparação é sobremaneira importante, com Negrão a reconhecer que, “estranhamente, é até mais cansativa na parte psicológica. É preciso treinar mais mentalmente do que fisicamente. Le Mans é uma pista longa, mas tem muitas retas pelo que dá para relaxar um pouco. Se fosse uma pista como aqui [Portimão] ia ser muito difícil, porque exige mais fisicamente do que mentalmente, mas é preciso uma preparação mais técnica para Le Mans”. No entanto, quando o piloto fala em “dar uma relaxada” no circuito de Le Mans lembra que a mesma acontece, geralmente, a 340 km/h na longa reta de Hunaudières…

Por outro lado, lembra que a ‘festa’ de Le Mans, que usualmente reúne milhares de pessoas foi em 2020 um cenário “triste” devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19. “É horrível ir para o autódromo e não ter ninguém. É triste. Em Le Mans é triste. Mas este ano em agosto vão estar até 50 mil pessoas, o que é pouco para Le Mans. Em 2019 foram 300 mil pessoas, só no sábado. Para as equipas, tem toda a parte de marketing e é bom trazer a pessoa que comprou um Alpine e levá-lo na pista ou levá-lo à boxe e mostrar como funciona o carro, o motor, os travões. Mostrar também como funciona a equipa, que não é um trabalho isolado, mas um trabalho de equipa. Se você perde, todos perdem e que se ganhamos juntos, perdemos juntos, não existe aquela coisa do ‘um ganha, o outro perde’. Se o carro bater todos perdemos”.

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