Quem é Miles Nurnberger, o homem que desenha os carros do 007?

30/11/2020

Parece que estava destinado a fazê-lo: filho de artistas, o pai fotógrafo profissional, dono de uma agência de publicidade e apaixonado por carros e a mãe retocava fotografias muito antes de existir o Photoshop.

Miles Nurnberger desenha carros desde os sete anos, uma espécie de premonição de que viria a trabalhar na indústria automóvel, decisão que tomou aos 12 quando visita o Royal College of Art. Mas, longe de imaginar que um dia seria na Aston Martin. Conheceu a companheira, Leighanne Earley, quando frequentavam o mesmo curso na universidade e juntos já trabalharam desde então na Citroën, Ford e Lincoln. Está há 12 anos na Aston Martin e o seu primeiro projeto foi o One-77. O DB-11 é uma espécie de filho dos dois, já que Leighanne desenhou o interior e Miles o exterior, mais uma vez juntos, na mesma marca.

Desafiámos o diretor de design da Aston Martin a explicar aquilo que faz, quais os desafios da marca no presente e no futuro, e como é trabalhar com a sua mulher.

M24: Com a pandemia mudou o método de trabalho para desenhar um carro?

MN: Nós ainda fazemos muitos modelos de barro para os nossos projetos e isso foi uma coisa que tivemos de parar de fazer. Passámos a utilizar muito mais modelos computorizados. Tivemos de aprender a trabalhar à distância e, o mais interessante, é que ultrapassámos as dificuldades e estamos a funcionar ainda melhor como equipa apesar de estarmos a fazer via Zoom ou Skype.

Ficámos surpresos com o quão úteis podem ser as soluções encontradas ao desenhar um carro desportivo, no desenvolvimento de um SUV

M24: A nova coqueluche da Aston Martin é agora o DBX, um produto novo para a marca. Quais foram os desafios para criar um SUV?

MN: Desenhámos o DBX de dentro para fora. O maior desafio foi criar um interior com um ambiente incrível e conseguir “vesti-lo” adequadamente. Ficámos surpresos com o quão úteis podem ser as soluções encontradas ao desenhar um carro desportivo, no desenvolvimento de um SUV. Costumávamos dizer que íamos construir um SUV nascido a partir de um desportivo. Só mais tarde realizámos o verdadeiro significado dessa frase. O espaço interior do DBX resulta diretamente da aplicação dos mesmos princípios que utilizamos para construir um excelente carro desportivo: a redução de peso, a construção dos bancos que têm de ser compactos, leves e, porque somos um construtor de carros gran turismo, têm de ser confortáveis. No exterior, a preocupação foi com o equilíbrio das proporções, ainda que dinâmicas e musculadas. As cavas das rodas tiveram um grande papel nesse resultado. No final, ficámos com um SUV com boas prestações fora de estrada, mas que tem um comportamento incrível em pista.

M24: O departamento de design da Aston Martin já não projeta só automóveis. O facto de desenhar casas, por exemplo, pode ajudar a construir melhores carros desportivos?

MN: Ajuda de diversas formas. Apesar de ser um negócio para a empresa, para o departamento de design é uma forma de conhecermos os clientes de luxo. Já não estamos apenas no mundo automóvel, estamos a perceber o que fazem e como vivem a outra parte da sua vida. Isso dá-nos uma perspetiva útil quando estamos a projetar um carro novo.

M24: Como é trabalhar com a sua mulher? A Leighanne teve algum papel no design do DBX?

MN: Trabalhamos juntos desde os vinte e poucos anos, desde a universidade, por isso é um processo muito natural. Estamos sempre muito ocupados, normalmente, só nos vemos na hora de almoço ou muito rapidamente quando nos cruzarmos durante o dia. A Leighanne não esteve diretamente envolvida no DBX. No entanto, acabou por ser envolvida, assim como o nosso filho, em muitos dos ensaios. Entre os dois, eu com 1,88 m, e a ela com 1,58 m, simulámos ótimos cenários de teste.

Ainda temos 85% dos carros que construímos [cerca de 90 mil em 107 anos] a funcionar e a circular nas estradas

M24: A Aston Martin dá extrema importância à qualidade dos materiais utilizados nos seus carros. Quais são as preocupações da marca em relação à reciclagem?

MN: O nosso foco há muitos anos tem sido a sustentabilidade e durabilidade, ao usar materiais nobres e construir carros que durem “uma vida”, contrariando a norma da indústria do “ciclo do produto”. Ainda temos 85% dos carros que construímos [cerca de 90 mil em 107 anos] a funcionar e a circular nas estradas. A pesquisa de novos materiais tornou o uso dos recursos mais eficiente e melhoram este rácio. Muitos fabricantes de automóveis fazem as grelhas de plástico, pintadas para parecerem metal, enquanto que as nossas são mesmo metálicas, sobretudo de alumínio, que podem ser reparadas ou recicladas.

M24: Teve algum envolvimento no design da moto AMB 001?

MN: Sim, logo desde a primeira visita que fizemos às instalações da Brough Superior em Toulouse (França). Partilhamos as mesmas filosofias sobre os materiais, autenticidade e rigor da montagem manual, por isso ficou claro que seria uma colaboração de sucesso. A Aston Martin Design esculpiu a forma e a Brough ficou encarregue do motor e do chassi. Vieram engenheiros da Brough a Gaydon (Inglaterra) para trabalharem nas proporções entre outros problemas, para depois o projeto regressar a França para a produção final.

M24: Sendo uma empresa relativamente pequena, há algum constrangimento financeiro quando abordam um novo projeto?

MN: Há sempre em todas as empresas, em algumas por onde passei vi desperdiçar muito dinheiro. Gastar dinheiro é a natureza do desenvolvimento de produto, queremos sempre mais. Na Aston Martin o dinheiro é gasto de forma inteligente, temos uma cultura de inovar sem desperdiçar.

Não fazemos carros da mesma forma que os outros construtores o fazem. Por isso, provavelmente, adotaremos a eletrificação a 100% mais à frente

M24: Como é que a marca vê a mudança de paradigma para a eletrificação? Há algum Aston Martin elétrico nos planos?

MN: Não fazemos carros da mesma forma que os outros construtores o fazem. Por isso, provavelmente, adotaremos a eletrificação a 100% mais à frente. Isso permite-nos novas oportunidades na medida em que diferente nem sempre é melhor. Tentamos fazer carros o mais próximo de arte possível num contexto industrial. A eletrificação permite a utilização de novas soluções, mas para nós a beleza e as proporções continuam a ser pilares fundamentais para construir um automóvel. Infelizmente, neste momento não posso comentar nada em relação a prazos para vermos um carro elétrico da marca.

Com o Valkyrie foi como se tivéssemos de aprender a ler e escrever de novo

M24: Como surgiu o Valhalla, um desportivo de dois lugares e motor central?

MN: Temos de olhar para o Valkyrie primeiro. Projetá-lo foi como voltar à escola outra vez, porque percebemos que com o passar do tempo conseguimos dominar muitos dos princípios de design de automóveis, mas eventualmente acabamos por utilizá-los vezes sem conta. Com o Valkyrie foi como se tivéssemos de aprender a ler e escrever de novo. O Adrian Newey [responsável pelo desenvolvimento dos monolugares da equipa de F1 da Red Bull Racing, e envolvido no também no Valkyrie], é um excelente tipo, mas consegue levar-nos à loucura. Disse-me algumas vezes: ‘Disseste-me que é difícil, mas não me explicaste porque é que é impossível’, referindo-se a soluções que queria integrar no Valkyrie. Por isso, o Valhalla reflete muito do que aprendemos com o Valkyrie. Não deixa de ser um produto extremo, diferente do que costumamos fazer historicamente na Aston Martin, mas resumido num ‘pacote’ que pode se utilizado todos os dias. Não da forma como utilizamos um DBX, mas como utilizamos um superdesportivo. Já o Valkyrie é o pináculo de um supercarro absolutamente extremo que pode ser usado tanto em pista, como em estrada.

M24: Qual é o seu Aston Martin preferido para conduzir?

MN: Agora, diria que é o DBX. Durante o confinamento andei com um durante cinco dias e ele conseguiu fazer-me sorrir sempre que o conduzi. É um carro muito divertido de guiar.