Abarthisti, o nascer do escorpião

21/11/2022

A segunda revolução industrial supôs o cultivo da sociedade de finais do século XIX e a indústria automóvel floresceu com a chegada do novo século. Os pioneiros construtores automóveis não se formaram em prestigiadas universidades. Era um tempo em que as novas profissões se transmitiam de maestro para aprendiz num contexto bem distinto. Porquanto, em muitos dos casos, os protagonistas tomaram proporções de lenda como exemplos de superação, ambição e paixão.

A Abarth foi uma das marcas cujo legado apenas é comparável ao génio e figura do homem que está por detrás do mito.

Família

O avô de Carlos Abarth era proprietário do hotel Sonne en Merano (então pertencente ao império Austro-Húngaro) e administrador da infraestrutura que oferecia o serviço postal à cidade, cuja população rondava os 15.000 habitantes.

Como qualquer Pai, e ainda para mais numa época de incerteza, desejava um dia poder deixar o seu património aos seus filhos, mas a escassa constância de Karl Antón Abarth, pai de Carlo, desanimava o chefe de família, um honroso e prestigiado membro da comunidade. O jovem interessava-se pela ópera, boxe e xadrez (Merano tem larga tradição do desporto chegando a albergar o campeonato do mundo), nunca permanecendo muito tempo com o mesmo interesse, nem dedicando tempo suficiente que justificasse uma mestria digna.

Tal acabou por levar Karl Antón a ingressar na academia militar por desejo do seu pai, pensando que aí sim este adquiriria a disciplina necessária. Karl Antón acabou por conhecer Dora Taussig, sua futura mulher (e mãe de Carlo), no tempo em que esteve alistado na academia. Seguindo um padrão previsível, Karl abandona a academia militar e viaja até à Checoslováquia, onde gere uma das fábricas do seu sogro, magnata da indústria têxtil. Também não encontrando estabilidade neste novo cargo, acaba por se mudar com Dora para Viena. Em 1907 nasceria a primeira filha do matrimónio e um ano mais tarde, a 15 de Novembro de 1908, sob o signo de Escorpião, chega ao mundo Karl Alberto Abarth (mais tarde, quando já residia em Itália, acabaria por alterar o seu nome para “Carlo”).

Com a I Guerra Mundial, Viena deixava de ser um lugar prospero, de modo que Karl Antón regressa com a sua família a Merano. A província de Bolzano, à qual pertencia a vila, tinha também sido marcada pela guerra, acabando por ser designada como um clima não favorável para o boémio Karl, regressando a Viena pouco tempo depois, apenas para rapidamente regressar a Merano de novo. O clima de instabilidade reflectia-se na sua relação com Dora, que não acompanha o regresso, ficando em Viena com os seus dois filhos.

As duas rodas

O pequeno Karl destacava-se nos desportos, e em particular no ciclismo. A mecânica das bicicletas deixou rapidamente de ter qualquer segredo para o jovem, que encontrou assim a sua primeira paixão. Como seria de esperar, as bicicletas deram brevemente lugar às motos.

Com apenas 16 anos, e enquanto estudava num instituto tecnológico, começou a trabalhar como aprendiz no constructor Castagna e Degan, um fabricante de chassis para motos e bicicletas. Aí demonstrou todo o seu talento na hora de modificar e melhorar a mecânica dos veículos de duas rodas. O ofício permitiu que conhecesse Josef Opawsky, campeão austríaco de motociclismo, que competia à altura na equipa oficial Motor Thun (MT).

Em 1927, e impressionado com os seus conhecimentos e perícia, Joseph abre as portas da equipa a Karl, que com apenas 19 anos entrava no mundo da competição motorizada como mecânico e piloto de testes, contribuindo para o êxito da MT e de Joseph Opawsky, particularmente com as alterações soberbas que concretizava nos motores Villiers que ele mesmo modificava.

Ainda que o habitat natural de Karl fossem as garagens e os testes, as circunstâncias ditaram que tivesse oportunidade de subir a uma moto e competir oficialmente, experimentando pela primeira vez a compleição competitiva.

Em Abril de 1928 um dos piloto da MT é baixa inesperada para participar num Grande Prémio, e a equipa oferece a Karl a possibilidade de se estrear numa prova oficial. Nos treinos da sua primeira prova, conseguia alcançar por 2 vezes o melhor tempo. Porém, na altura da prova, a equipa obriga Abarth a participar com uma outra moto, que o leva a desistir da prova. Suspeitando de tentativa de sabotagem por parte de outros pilotos pela sua surpreendente actuação inicial, acaba por deixar a equipa.

Pouco tempo depois, adquire uma moto Grindley-Peerles de 250 centímetros cúbicos em segunda mão, que modifica para competição. A sua primeira vitória chegava em Saltzburgo por Julho desse ano. O mérito do triunfo era múltiplo: pelos 19 anos que cumpria, por ser alcançado apenas 3 meses após a sua estreia em competição, por competir sem o apoio de uma equipa oficial, e porque era ele próprio quem realizava o trabalho de preparação da moto. Numa alusão futebolística, era o mesmo que cruzar para a área a estar lá para finalizar.

A competição motorizada moldava-o, e a sua vida passaria a girar em torno deste único eixo.

Um talento assim não passava despercebido, e no ano seguinte figurava na equipa britânica James. Simultaneamente, e explorando todo o seu talento, Karl construía o primeiro veículo de nome Abarth nesse mesmo ano. Tratava-se de um motociclo com chassis próprio, no qual se encrustava um motor a dois tempos com refrigeração a água. Começava já a deixar algumas mostras do maestro que se tornaria daí por uns anos.

Aos 25 anos tinha já conseguido cinco campeonatos da Europa de motociclismo, mas em 1933 sofre um duro acidente em Linz, que lhe deixava sequelas para o resto da vida. Vê-se obrigado a abandonar o motociclismo, mas encontra um resquício pelo qual pode continuar a competir, passando para a categoria de sidecars.

Sidecars

Esta nova categoria do motociclismo permitiu a Karl continuar a inovar e assombrar, construindo chassis sensacionais pelos mais diversos regulamentos. Voltava aos êxitos quase de imediato, apesar da sua visão acerca da mecânica e competição se ter alterado devido à situação em que se encontrava. Começa a tomar consciência da possibilidade de publicitar as suas habilidades e não duvida de que poderia retirar largos proveitos disso.

Em 1934, com o patrocínio da ofícina Dougan, Abarth enfrenta o lendário comboio Orient Express ao longo dos 1300 quilómetros de distância que separavam as cidades de Viena e Ostend. Na sua primeira tentativa, o Orient Express conseguiu uma vantagem de 15 minutos devido a uma falha eléctrica do sidecar de Karl. Duas semanas mais tarde o sidecar bate o comboio por quase 20 minutos e o nome Abarth começa a associar-se a um talentoso piloto e constructor de motociclos e sidecars.

Pouco tempo depois conhece a sua futura mulher e o genro de Ferdinand Porsche – Anton Piech – para quem esta trabalhava como secretária. Indirectamente estabelecia vínculos com uma das dinastias mais relevantes da história da indústria automobilística, relação que teria uma importância pivotal na hora da passagem de Abarth para as quatro rodas.

Karl havia competido sob as cores da bandeira austríaca até essa altura, mas em 1938 recebe um convite da delegação italiana para o fazer sob as suas. No clima actual pré-guerra muda-se para a cidade dos seus antepassados, Merano, adoptando oficialmente o nome de Carlo Abarth.

Manteve-se activo em competição até que um segundo gravíssimo acidente altera novamente o destino da sua carreira, colocando um fim ao seu brilhante trajecto como piloto. Abarth permaneceu um ano hospitalizado na Jugoslávia, local onde se havia dado o acidente. Nesse momento começava a 2ª Guerra Mundial, e Carlo decide permanecer na Jugoslávia, exercendo o ofício de mecânico. Devido ao racionamento de combustível, realiza a conversão de motores de combustão a gasolina para que possam funcionar com diesel. A tecnologia baseava-se na gaseificação de materiais como querosene ou carvão vegetal originando monóxido de carbono e hidrogénio (mediante o tratamento da matéria-prima com vapor a elevadas temperaturas).

Com o fim da guerra regressa a Merano, onde o seu pai, naturalizado italiano anos antes, intercede para que este adquira esse mesmo privilégio, adoptando já oficialmente o nome de Carlo Alberto Abarth.

O Projecto Cisitalia-Porsche 360

Numa situação económica complicada, Carlo realizava qualquer trabalho que surgisse, como fabricar e vender quadros para bicicletas. Com 37 anos e após os dois graves acidentes que sofrera era impossível o retorno à competição, mas o seu plano passava a ser outro.

Entrou em contacto com Rudolf Hruschka, antigo engenheiro da Porsche, que também se encontrava em Itália. Ambos tiveram oportunidade de compartir a paixão pelos motores e dedicaram-se a analisar a situação internacional da indústria. Dentro da precariedade que se vivia em toda a Europa, a Itália parecia menos castigada do que a Alemanha e com mais possibilidades de liderar a recuperação industrial do sector, o que se afigurava como uma vantagem competitiva primordial. É nesse momento que Carlo translada o seu interesse para os veículos de 4 rodas.

Ambos possuíam a possibilidade, e tendo em conta o nexo que os unia, não duvidaram quando chegou a hora de apresentar a ideia à família Porsche.

A proximidade da empresa ao regime nazi em alguns projectos como o Volkswagen Beetle tinha levado à ordem de prisão do patriarca do clã, Ferdinand Porsche, e do seu genro Anton Piech. O filho do fundador da marca, Ferry, ocupava-se então dos assuntos familiares, perpectuando o ofício do seu pai. A este muito agradou a ideia de Carlo e Rudolf, tendo colocado ao dispor a representação da Porsche Konstruktionen em Itália.

Ainda que ambos estivessem mais interessados na faceta competitiva da iniciativa, acordaram uma abordagem multifacetada à indústria.

Abarth recorre então ao que era considerado como melhor piloto do mundo à altura, Tazio Nuvolari, com quem havia coincidido nos tempos em que pilotou no campeonato da europa de motociclismo.

Nuvolari, por sua vez, colocou Abarth em contacto com o empresário italiano Piero Dusio. Este, antigo piloto, futebolista e banqueiro, era por essa altura o proprietário do clube Juventus Football Club. Outra das suas empresas dedicava-se à construção de automóveis desportivos e de competição, de nome Compagnia Industriale Sportiva Italia (CIS Italia). Tazio Nuvolari teve alguns dos seus últimos momentos de glória precisamente aos comandos de automóveis construídos pela CIS Italia. Com 55 anos, o piloto italiano esteve perto de ganhar a prestigiadíssima Mille Miglia em 1947, terminando na segunda posição com o Cisitalia 202 MM de 1100 centímetros cúbicos, atrás do Alfa Romeo 8C 2900 pilotado por Romano e Biondetti.

Com a direcção de Dante Giacosa e Giovanni Savonuzzi e a premissa de construir automóveis baratos a partir da simples mecânica dos motores Fiat de 1100 centímetros cúbicos, Dusio comparticipou o projecto com os fundos necessários, tendo parte destes sido empregues na libertação de Ferdinand Porsche, que há altura ainda permanecia encarcerado em França.

O projecto foi designado de Cisitalia-Porsche 360. O desenho ficou a cabo da equipa Porsche, em Estugarda, enquanto a fabricação ocorria em Turim. Ferry Porsche recorreu a Robert Eberan Von Eberhost, velho conhecido da família e responsável pela criação do Auto Union Type D, para supervisionar meticulosamente o trabalho em Itália. Por esta altura, Abarth passava a ocupar o cargo de director desportivo da Cisitalia.

O resultado foi um autêntico fiasco tecnológico, o que inevitavelmente levou a um fiasco de propósito. Numa segunda tentativa, alterou-se o motor utilizado para um bloco de 1500 centímetros cúbicos em posição central, acoplado a um sofisticado sistema de tracção às 4 rodas. Os testes pareciam promissores, mas a chegada oficial às pistas nunca ocorreu. Os gastos de produção aliados aos necessários para entrada na alta competição acabaram na bancarrota da Cisitalia em 1949. Os grandes projectos, como o do Cisitalia-Porsche 360 em que Carlo Abarth, Piero Dusio, Rudolf Hruska e a família Porsche se aventuraram, trazem a si aliados o risco de originar grandes fracassos, pelo menos a nível industrial, tal qual sucedera.

Piero Dusio, ao ser visado pelo fisco italiano, foge para a Argentina, enquanto Carlo permanece em Itália, tendo ficado com alguns Cisitalia 204 Sport e outros repostos que conseguiu recuperar e que futuramente provariam ser valiosíssimos.

Porém, o que se pode apelidar como um fracasso foi pedra basilar para a criação de uma lenda. Carlo constituiria a Abarth & C.Srl com grande parte da equipa constituída por antigos elementos da Cisitalia, a 31 de Março de 1949, partindo justamente daqueles Cisitalia 204 Sport que se converteriam no primeiro de muitos modelos a envergar o emblema do escorpião.

Era habitual à altura, tal como agora, que as marcas utilizassem a competição como forma de se darem a conhecer, e uma presença conhecida das pistas como Carlo Abarth tinha todo o conhecimento e contactos para levar a cabo tal objectivo.

Abarth viveu da competição motorizada desde muito jovem e ainda que tenha rapidamente adquirido os dotes empresariais e publicitários, a competição em si sempre foi o seu mundo. Dois detalhes são prova disto mesmo: o primeiro reside na escolha de Abarth em Armando Scagliarini (pai do afamado piloto italiano Guido Scagliarini que passaria a representar a Cisitalia – Abarth) para seu sócio inicial; o segundo no facto de apenas 15 dias após criar a empresa debaixo do seu signo do zodíaco, ter constituído a “Squadra Carlo Abarth”, a 15 de Março.