Fairey IIID e Airbus A340: 80 anos depois

19/02/2019

No momento em que se celebram os 150 anos sobre a data do nascimento do Almirante Gago Coutinho, 17 de Fevereiro de 1869, pede-me O Mundo Português para comparar o incomparável: o Fairey IIID com que Gago Coutinho e Sacadura Cabral realizaram a travessia do Atlântico Sul em 1922 e o Airbus A340 com que tantas vezes fiz o mesmo percurso mais de oitenta anos depois.

Mais que uma proeza aérea como muitas outras que aconteceram nas primeiras décadas do século XX, a viagem dos dois heróicos portugueses teve o mérito de demonstrar ao mundo que era possível voar de dia ou de noite sobre os oceanos mantendo um rigor de navegação idêntico ao que os navios de então conseguiam. Se o voo sobre terra com recurso a referências visuais para orientação era já relativamente frequente nos anos 20, o voo sobre o mar estava ainda na sua infância. Havia muitos problemas para resolver, nomeadamente no que respeita à orientação. De que serviria ter um bom avião (na altura ainda eram raros…) se não fosse possível encontrar o ponto de destino antes que se esgotasse a gasolina?

Gago Coutinho deu um contributo extraordinário para a solução deste problema através de duas invenções de sua autoria: a primeira foi o chamado “sextante de bolha”, uma engenhosa adaptação do sextante utilizado pela navegação marítima de forma a poder ser utilizado em altitude, e a segunda o chamado “corrector de rumos”, um instrumento que permitia corrigir o rumo indicado pela bússola quando o avião se afastava da rota predeterminada por influência dos ventos. Só para dar um exemplo do rigor da navegação do Comandante Coutinho e dos seus instrumentos direi que o facto de terem conseguir encontrar os rochedos de São Pedro e São Paulo, dois pedaços de pedra perdidos no meio do oceano quando lhes restavam apenas dois ou três litros de gasolina nos tanques, entra nos domínios do prodígio. E a segurança era tanta que até marcaram encontro com o cruzador português “República” para aquele mesmo lugar.

Mas vamos lá então comparar o incomparável.

O Fairey III D de 1922 (foram utilizados três aviões idênticos para a travessia) era produzido em Inglaterra pela fábrica com o mesmo nome e vinha equipado com um motor Rolls-Royce de 350 cavalos capaz de fazer descolar um peso máximo de 3,5 toneladas. O Airbus A340 é produzido por um consórcio de vários países europeus e é propulsionado por quatro motores CFM 56 5C. Tratando-se de motores a jacto (sem veio de transmissão) não existe a componente “potência”, avaliando-se o seu desempenho pela designação de “impulso”. Neste caso, cada um dos CFM 56 5C instalados no A340 pode fornecer até 34 mil libras de impulso. Se fosse possível estabelecer uma relação (não é) estaríamos a falar de muitos milhares de cavalos de potência. Em qualquer caso, o impulso gerado por estes quatro motores permite “arrancar” do solo nada menos que 257 toneladas, o peso máximo à descolagem permitido para um avião deste tipo.

O Fairey IIID tinha 12 metros de comprimento e quatro metros de altura, medidos a partir dos flutuadores. Os seus tanques de combustível podiam acomodar até perto de 1.250 litros de gasolina. O Airbus A340 tem 64 metros de comprimento e a sua altura máxima (na cauda) é de 17 metros. Pode transportar nos seus tanques cerca de 139.600 litros de combustível.

Como já foi dito, a navegação nos Fairey fazia-se por sextante de bolha e corrector de rumos, admitindo-se como perfeitamente aceitáveis erros até 10 milhas, cerca de 18 quilómetros. No A340 a navegação é feita por GPS e os erros, quando existam, são da ordem dos poucos metros. O Fairey IIID, contando como tal os três aviões utilizados, percorreu as 4.500 milhas (cerca de 7.800 km) da ligação entre Lisboa e o Rio de Janeiro em 62 horas e 26 minutos de voo a uma velocidade média de 133 quilómetros por hora. O nosso Airbus A340 precisa de cerca de 9 horas para fazer o mesmo percurso com uma velocidade aproximada de 850 quilómetros por hora.

O Fairey só conseguiria completar a etapa entre Cabo verde e Fernando de Noronha se tivesse vento favorável, daí a escolha do mês de Março que é quando os alísios sopram com mais intensidade de Leste para Oeste. No caso do Airbus os ventos só têm reflexo na antecipação ou atraso na hora de chegada.

Gago Coutinho e Sacadura Cabral comunicavam entre si através de um bloco de notas onde escreviam as suas mensagens pois o ruído do motor Rolls-Royce impedia qualquer outra forma de comunicação. O cockpit do A340 está de tal forma bem insonorizado que o silêncio é quase total; os dois pilotos podem fazer-se ouvir um ao outro falando em voz baixa. Mesmo assim o gravador do cockpit (Voice Recorder, uma das célebres “caixas pretas” que por acaso até são amarelas…) consegue registar tudo o que é dito naquele espaço. Mas podem ficar descansados os senhores pilotos: sempre que o avião chega ao estacionamento no final de uma viagem toda a gravação é automaticamente apagada.

O Fairey IIID era um hidroavião e falhou várias tentativas de descolagem porque o peso e a ondulação do mar nem sempre lhe permitiam atingir a velocidade suficiente para levantar voo. O Airbus A340 é um avião terrestre que opera em pistas de asfalto com cerca de quatro mil metros de comprimento e só tem algumas dificuldades se a temperatura ambiente for muito elevada e (ou) o aeroporto se situar a grande altitude.

O Fairey IIID era um avião “aberto” com dois lugares em tandem (um piloto à frente e outro atrás). Não tinha qualquer protecção contra o frio, o sol e a chuva. O A340 tem um excelente sistema de ar condicionado que permite manter uma temperatura média de 24 graus no interior do avião durante toda a viagem; além disso todo o ar que se respira a bordo é filtrado e renovado a cada três minutos.
Toda a pilotagem no Fairey IIID era feita manualmente obrigando os pilotos a estarem agarrados aos comandos de voo durante todo o tempo, facto que exigia grande esforço e concentração. O Airbus vem equipado com dois pilotos automáticos que asseguram todas as funções de pilotagem mesmo nas condições mais difíceis e são capazes de fazer aterrar o avião em condições de visibilidade praticamente nula com uma precisão milimétrica.

Coutinho e Sacadura passaram 62 horas “entalados” no espaço exíguo dos seus postos de pilotagem onde mal se conseguiam mexer; as necessidades fisiológicas eram satisfeitas no local. O Airbus A340 tem um amplo cockpit onde os pilotos se podem movimentar à vontade sempre que assim o entendam. Além disso tem adjacente uma casa de banho e um pequeno compartimento com um beliche onde se dorme muitíssimo bem. Este T0, como lhe chamamos, só pode ser utilizado nas viagens de ultra longo curso quando existam pelo menos três pilotos a bordo.

Para terminar esta “comparação incomparável” falta fazer referência ao mais importante, ou seja, o factor humano. Nesse aspecto o Fairey IIID de 1922 leva enorme vantagem sobre o Airbus A340. Ora vejam:

Sacadura Cabral foi um piloto brilhante, um dos melhores da sua geração e deu um contributo decisivo para a afirmação da Aviação Naval em Portugal. Gago Coutinho foi um distinto oficial da Marinha de Guerra mas foi acima de tudo um sábio e um cientista. O seu relatório da viagem de 1922 publicado na revista do Aero Clube de Portugal é um verdadeiro tratado de cálculo matemático que atesta o elevadíssimo nível da sua preparação académica e profissional.

Os pilotos dos Airbus A340 de hoje são homens (e mulheres) absolutamente normais que são exaustivamente treinados ao longo das respectivas carreiras para lidarem com máquinas extremamente complexas e tecnologicamente sofisticadas. Quando terminei a minha carreira em 2006 existiriam em todo o mundo alguns (poucos) milhares de homens e mulheres com capacidade para pilotar um destes aviões mas em 1922 não haveria mais que uma meia dúzia capaz de fazer o que Coutinho e Cabral fizeram. É essa a grande diferença.

José Correia Guedes / Jornal dos Clássicos