O avião fantasma que acabou como bar em Lisboa

17/08/2020

Março de 1980. Proveniente de Sarjah, nos Emirados Árabes Unidos, aterrava no aeroporto da Portela um avião Convair 880 com matrícula americana N8806E. A bordo vinham apenas os três tripulantes indispensáveis: comandante, copiloto e mecânico de voo. De resto, tudo vazio.

Este tipo de avião era uma verdadeira raridade e logo despertou a atenção de todos os frequentadores do aeroporto, este vosso amigo incluído. De facto, entre 1959 e 1962 foram construídos apenas 65 exemplares do Convair 880, um deles para Elvis Presley. O projecto terá falhado devido à concorrência do Boeing 707 e Douglas DC8, bem mais económicos e fiáveis.

Mas voltemos ao nosso Convair, que a partir daquele dia de Março passou a ficar estacionando em permanência no parque Foxtrot da Portela. Como na época era director adjunto da revista Sirius armei-me em jornalista e fui investigar. Não imaginava eu a história “picante” que iria encontrar.

Como já foi dito, o avião chegou dos EAU, estacionou no parque F e nunca mais houve notícias do comandante Gatrell e respectivos colegas. Soube-se que pertencia à Onyx Aviation, uma companhia de “leasing” americana, mas operava sob licença da Santo Domingo Aviation, S.A., da República Dominicana. A empresa fretadora era a Natariega Inversionista S.A., com sede no Panamá, que pretendia carregar em Lisboa “equipamentos não especificados” com destino a uma organização que dava pelo curioso nome de Commandant Embarkation baseada em Karachi, Paquistão. O destinatário final não era mencionado mas sabia-se que estava no … Afeganistão! Nem um filme do James Bond teria protagonistas tão interessantes.

Fui então tentar saber o que seriam os tais “equipamentos não especificados” de que falava a documentação entregue em Lisboa. Puxa daqui, puxa de acolá, como nesta terra ninguém sabe guardar segredos ao fim de alguns dias lá descobri, sem surpresa, que os tais “equipamentos” não eram mais que umas inocentes 19 toneladas de armas e munições que o Estado Maior das Forças Armadas, através da Divisão de Logística, se preparava para exportar. Era um bom negócio para os militares, porque assim se viam livres de excedentes da guerra do Ultramar e ainda recebiam algum dinheiro em troca. Estava tudo tratado e assinado, só faltava a luz verde do Governo. Grande azar.

O primeiro-ministro era Sá Carneiro e o seu Ministro dos Transportes era o engenheiro Viana Baptista, que fizera carreira na TAP no Departamento de Manutenção e Engenharia que chegou a chefiar. Ora Viana Baptista conhecia bem o negócio da aviação e veio lembrar que Portugal era signatário da Convenção de Chicago de 1944 que, entre muitas outras coisas, proibia o transporte de material militar em aviões civis. Grande decepção. O negócio estava estragado e os militares ficaram furiosos mas Sá Carneiro não brincava em serviço e tudo voltou à estaca zero.

E o avião? Depois de semanas à espera, sem dinheiro nos bolsos, o comandante Gatrell e “sus muchachos” decidiram que era de mais. Resolveram então pegar no Convair e tentar chegar aos Estados Unidos. Conseguiram – ninguém sabe como – que os autorizassem a partir sem terem pago o combustível, o “handling” e o estacionamento do avião e no dia 4 de Maio descolaram da Portela com destino a Nova Iorque. Só que já sobre o Atlântico o comandante Gatrell foi informado que todas as empresas envolvidas no negócio tinham, como que por “milagre”, deixado de existir e o avião não poderia aterrar nos Estados Unidos. A partir daquele momento o Convair transformou-se num avião “fantasma” que ninguém queria nem dado.

Decidiram então regressar a Lisboa, terra de gente santa que a todos recebe bem, e o velho avião lá voltou ao parque Foxtrot que tão bem conhecia. Há quem diga que os tripulantes “sacaram” de bordo tudo o que havia para sacar, nomeadamente os rádios e outros equipamentos do cockpit que se presume tenham acabado na Feira da Ladra.
O Convair ficou anos estacionado no mesmo local sem que ninguém o reclamasse. As taxas de estacionamento chegaram aos muitos milhares de contos e a partir de certa altura tornou-se óbvio que aquele avião nunca mais voltaria a voar, tal o estado de degradação que atingira.

A administração do aeroporto, sem esperanças de receber um tostão por aquele pedaço de sucata, decidiu fazer um leilão. Foi então que apareceu um empresário da noite e arrematou o Convair por tuta e meia para o transformar em bar de alterne. Conseguiu a respectiva autorização da Câmara Municipal de Lisboa, sabe-se lá como, e rebocou o avião para um terreno adjacente à Segunda Circular que lhe pertencia ou arrendava. Assim nascia O Avião – Bar de Alterne e por ali ficou durante anos e anos para grande vergonha de todos nós.

José Correia Guedes / Jornal dos Clássicos

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