No grande esquema da sociedade atual, um automóvel é provavelmente o segundo maior investimento financeiro que se faz ao longo da vida. O primeiro é, inevitavelmente, na habitação. A menos que se junte dinheiro para comprar um Lamborghini ou um Ferrari e se decida viver num T1 na Amadora, numa inversão de prioridades tradicionais. Por isso, sendo um investimento até certo ponto avultado, o modo como se estima o automóvel diz muito sobre uma pessoa (mesmo que não seja definidor).
Há uns anos, com o meu carro na oficina, necessitado de uma boleia e sem vontade de despender euros num táxi (nem se imaginava ainda o termo Uber e smartphone era sinónimo de chamadas, mensagens MMS, ecrã a cores e pouco mais), colei-me a um amigo que, por acaso, ia de carro para um local perto daquele para o qual precisava de me deslocar.
O carro em questão para a boleia era-me irrelevante, mas ao abrir a porta encontrei diversos ‘tesouros’ estranhos que me fizeram repensar a ideia de ir ‘à pendura’: um pacote de batatas fritas no banco do passageiro com algumas delas espalhadas pelo assento, um amontoado de revistas enroladas no banco de trás e aquilo que me pareceram migalhas de pão ou de bolachas no chão. Muitas mesmo. Entrei, limpando o possível do banco, enquanto o meu amigo, já instalado ao volante, desculpava-se pela “desarrumação”.
Usualmente, o carro reflete de alguma maneira a forma como a pessoa se relaciona com os seus pertences. E com os dos outros. Não se pede a ninguém que seja ultra-zeloso com o carro, mas tentar não dar os chamados ‘beijinhos’ ou encostos de portas nos carros dos outros é uma questão de civismo. Afinal, há lá coisa pior para um tipo dos automóveis do que chegar ao mesmo e ver a porta com um vinco porque o vizinho do lado se distraiu?
No meu caso, confesso, tenho um problema. Sou dos que são ultra-zelosos, quer com o carro próprio, quer com os de parque de imprensa que são cedidos para ensaios. E isso consegue levar à exasperação o mais paciente dos ‘penduras’. Por exemplo, carros com cadeirinhas de bebé são como alho para um vampiro: são de evitar. Aquela porta precisa de abrir e muito… Partilhando histórias, um dos vincos numa das portas do meu carro veio daí.
É este o tormento…
Sempre que passo por mais um daqueles lugares apertados entre carros, no qual finjo não reparar só porque há o risco de alguém lhe dar uma ‘portada’, recordo a voz de António Variações ao cantar “do que gostas já está preenchido”. E muitas vezes está. O artista não falava, certamente, de estacionamento urbano, mas gosto de pensar que sim. De forma que segue mais uma voltinha para encontrar um lugar que será certamente melhor do que aquele.
Quiçá, naquele que será o Santo Graal dos lugares, entre postes ou bem encostado à parede. Às vezes, não aparece e somos deixados a lamentar o desperdício que foi aquele primeiro lugar que, se calhar, até nem era assim tão mau. Sei que os aficionados por carros sentem o mesmo que eu e que, no fundo, se reconhecem na busca incessante pelo lugar mágico, mesmo sabendo que é um pouco como encontrar o bilhete mágico para visitar a fábrica de chocolate do Tio Charlie. Na maior parte das vezes não aparece. Muitas vezes, nos parques de estacionamento, andamos à roda, enquanto um qualquer transeunte franze o sobrolho, em inquietação – “Mas o que andará aquela alma tonta (ou inserir um qualquer outro insulto) a fazer, que já passou por aqui três vezes”.
A resposta verdadeira não sei, mas o que sei é que o carro me fica agradecido por garantir a sua ‘saúde’. A do pendura, essa, perde-se sempre na exasperação de uma caça ao ‘gambuzino’ dos tempos modernos.
A este respeito, admito que tenho muita curiosidade para, um dia, ver os sistemas de condução autónoma a tentarem estacionar um SUV ‘gigantone’ em garagens como aquela onde estaciono diariamente com modelos de diversas dimensões e feitios. Estacionar, entenda-se, sem levar a cor de qualquer uma das paredes como souvenir nas laterais…