O GP do Mónaco é considerado o maior anacronismo da F1, hoje dominada por circuitos permanentes, modernos, rápidos, mas por vezes demasiado “higiénicos” ou pouco desafiantes.
Disputado nas ruas abertas ao trânsito durante a semana, o Mónaco constitui um desafio puro de precisão na pilotagem com o seu traçado estreito e enclausurado entre rails de proteção, com zonas muito lentas, raros pontos de ultrapassagem e uma passagem chiaroscuro no túnel que liga a parte alta da cidade ao porto.
A prova disputa-se desde o início do século, mas só em 1938 foi elevada à categoria de Grande Prémio, numa edição vencida por William Grove-Williams no seu Bugatti pintado com um verde escuro que viria a ser a cor dominante em carros de competição ingleses – o British Racing Green.
W. Williams, como gostava de ser chamado, foi daquelas personagens cuja vida dava um filme. Durante a II Guerra Mundial e graças à sua fluência em francês foi lançado pelos serviços secretos britânicos de para-quedas sobre a França ocupada com a missão de apoiar a criação de uma rede de resistência, em 1943 foi capturado pelos nazis e preso num campo de POW (Prisioneiros de Guerra), onde foi fuzilado pelos alemães. Uma versão mais romântica, alega que o piloto foi libertado pelo Exército Vermelho e que acabou por se retirar no anonimato para os EUA.
Em 1950, o GP do Mónaco foi uma das provas incluídas no primeiro Campeonato do Mundo de F1 com a vitória a ser conquistada por Juan Manuel Fangio. Seguiram-se quatro anos fora do calendário do Mundial, a que só regressa em 1955, para não mais o deixar.
Um ano que ficou marcado pelo incrível acidente de Alberto Ascari que perdeu o controlo do seu Lancia na chicane do porto e mergulhou nas águas do porto. Ascari escapou ileso daquele acidente, mas quatro dias mais tarde viria a morrer num teste de um Ferrari 750 em Monza, mais uma vez no fatídico maio, dia 26.
Na história louca do GP de Mónaco de F1 apenas um mártir e vários heróis. O mártir, Lorenzo Bandini, que em 1967 perdeu a vida nas chamas do seu Ferrari, ao embater nos rails de proteção da chicane do porto, o preciso local que o piloto italiano tinha aconselhado John Frankenheimer para realizar a cena de um acidente no seu filme “Grand Prix”.
Na galeria de heróis, Graham Hill, o “Sr. Mónaco” que venceu o grande prémio monegasco cinco vezes, sendo também o único piloto a conquistar a tripla coroa do desporto automóvel com vitórias nas mais importantes competições motorizadas do mundo – as 500 Milhas de Indianapolis, as 24 Horas de Le Mans e o GP do Mónaco.
O recorde estabelecido por Graham Hill nas ruas do Mónaco na década de 60, só seria batido pelo companheiro de equipa do seu filho Damon Hill na Williams, o brasileiro Ayrton Senna que em 1984 fazia a sua estreia no circuito em que todos os pilotos de F1 sonham deixar a sua marca pessoal.
GP do Mónaco 1984 – nasce uma estrela
Quando chegou ao Mónaco no dia 30 de maio, Ayrton Senna confessava ao seu chefe de equipa Alex Hawkridge: «Se me deixarem sozinho, com certeza me perco. Nunca estive aqui nem mesmo para ver corrida.»
Era a primeira vez de Ayrton no Mónaco e a segunda vez que corria num circuito citadino – a primeira fora em Macau no ano anterior.
Naquele tempo ainda não haviam simuladores ou jogos de vídeo para os pilotos tomarem um primeiro contacto virtual com um circuito e, por isso, o plano de reconhecimento de Ayrton foi fazer todo o circuito, primeiro a pé, na sua diária corrida de 6 quilómetros e depois com uma bicicleta com motor.
Um reconhecimento que serviu para o impressionar com a atmosfera única do principado, onde viria a ter um apartamento, um privilégio reservado aos muito abonados, porque para ter uma licença de residência no Mónaco era necessário um visto gold, só possível com uma conta bancária com muitos zeros à direita de um número.
Nas ruas, Ferraris, Rolls Royces, Maseratis e outros carros de luxo, passeavam em ritmo de passeio junto ao porto onde estavam ancorados os mais opulentos iates da bacia mediterrânica, propriedade de multimilionários, estrelas de cinema e cabeças coroadas da Europa.
Nas ruas e nas esplanadas, mulheres de impecável aspeto aristocrático passeavam os seus cães de marca, os polícias trajados a rigor e de luvas brancas ordenavam o trânsito que percorria as ruas que no domingo seriam transformadas em pista de Fórmula 1.
Ayrton fez o seu reconhecimento do traçado e naquela noite jantou com Reginaldo Leme e Alex Hawkridge no restaurante Gianni, um dos mais conhecidos da Avenida Grace. Depois do jantar foi tentar a sua sorte no Casino Loews onde apostou forte na roleta, jogando com o número do seu Toleman – o 19.
Reginaldo Leme recordou essa noite a Ernesto Rodrigues, no seu livro “Ayrton Senna – Herói Revelado”: «Uma morena meio feiosa e de corpo bonito, uma dessas moscas de padaria da F1 ficou dando muito em cima dele. Ele estava ganhando na roleta e muito animado disse:
– Domingo vou ganhar essa corrida.»
Na quinta-feira, Ayrton aproveitou os primeiros treinos livres para cumprir o seu plano de reconhecimentos, agora ao volante do seu novo Toleman. Rodou devagar durante oito voltas porque, segundo Rory Byrne, estava a fotografar mentalmente cada metro do circuito que tem 3,312 quilómetros de distância, utilizando a mesma técnica que anos antes adotara no velho kart preparado por “Tchê” para se familiarizar com o traçado de Interlagos.
Muitos pilotos levam anos a conhecer bem os segredos e truques de um circuito, sabendo exatamente as trajetórias certas e as relações de caixa que devem usar em cada zona da pista, mas Ayrton parecia ter essa capacidade de memorização imediata, o que conjugada com uma intuição natural e um absoluto controlo do carro, o colocava ao nível de pilotos mais experientes. No exíguo e muito técnico traçado do Mónaco, as vantagens competitivas dos melhores carros acabam por se diluir e a perícia e virtuosismo do piloto passam a assumir um papel mais preponderante. Ayrton sabia disso e não queria deixar escapar a oportunidade de se bater com os homens da frente, que até aí só vira com uns binóculos a partir do seu Toleman.
Ayrton parecia ter essa capacidade de memorização imediata, o que conjugada com uma intuição natural e um absoluto controlo do carro, o colocava ao nível de pilotos mais experientes
Daquela vez não iria precisar de lentes de ver ao longe porque faria um notável zoom in à liderança. Na qualificação fez uma volta rápida que lhe valeu o 13º lugar na grelha, explicada com humor pelo brasileiro: «Olhe que eu tirei cada fino que só vendo. Andei raspando não sei quantas vezes no guarda-rail. Tanto que até o número pintado no meu pneu sumiu».
Pouco momentos antes da partida o Mónaco parecia viver a época das monções, com uma chuva copiosa a alagar a pista e a dificultar o que já de si era difícil. Seria também a primeira vez que Ayrton iria disputar um Grande Prémio à chuva.
Na largada, Alain Prost, autor da pole position deixa-se surpreender pelo Lotus de Nigel Mansell. Lá para trás e no meio do spray de água levantado pelos carros da frente, Ayrton consegue furar até ao 9º lugar para daí iniciar uma das mais espetaculares recuperações da longa história daquele Grande Prémio.
As primeiras vítimas do ataque de Senna são o ATS de Manfred Winkelhock e o Williams de Jacques Laffite (o tal que Frank Williams preferiu manter sob contrato em vez de Senna), na 10ª volta depois de um erro na chicane, Ayrton manteve a frieza e aproveitou os problemas de Keke Rosberg e Michelle Alboreto para se aproximar da frente da corrida.
O seu Toleman parecia voar sobre a água e os olhos do mundo estavam agora postos nele. Galvanizado e confiante, livra-se da oposição do Ferrari de René Arnoux e desfere um ataque ao veterano Niki Lauda, colocando-se na segunda posição, já que o líder, Nigel Mansell tivera um encontro imediato com os rails umas voltas antes. Cumpridas apenas 19 voltas, Ayrton Senna tinha apenas pela frente o McLaren-TAG Porsche de Alain Prost.
A distância para o primeiro era considerável e a prudência aconselharia a moderar o andamento, já que um segundo lugar no Mónaco seria um resultado fantástico para um piloto a cumprir o seu sexto Grande Prémio. Mas Ayrton confiava nas suas capacidades e na sorte de casino, na roleta do Mónaco acreditava que o seu 19 sairia vencedor e atacou a liderança aparentemente confortável de Alain Prost. A chuva caía cada vez com mais intensidade e o francês debatia-se com problemas nos travões do McLaren, Ayrton recuperava segundo atrás de segundo, levando na peugada outra surpresa, o talentoso Stefan Bellof que, ele também, encurtava a distância para Ayrton Senna.
Todos acreditavam que com aquele ritmo e ainda muito longe do final da prova, seria inevitável um final apoteótico com Prost, Senna e Bellof a discutirem a vitória. Em vez de um final apoteótico, um golpe de teatro. Jacky Ickx, consagrado piloto belga que alcançou 25 pódios na F1 e seis vitórias nas 24 Horas de Le Mans, empossado na qualidade de diretor de prova, decide terminar a prova na 31ª volta, cedendo à pressão de Ron Dennis e aos insistentes pedidos de Alain Prost, que cada vez que passava na reta da meta gesticulava, fazendo sinais ao belga de que a pista estava imprópria para consumo, totalmente alagada nalgumas zonas do circuito.
Ayrton cruza a linha de meta na frente, depois de ter ultrapassado Prost, e festeja como se tivesse alcançado a sua primeira vitória, apesar de saber que isso não acontecera: «Sabia que não tinha ganho a corrida, mas havia sido ótimo para mim e para a equipe e eu sentia-me feliz. Por isso acenei». Prost desacelerara porque sabia que o resultado que contava era o da volta anterior à da amostragem da bandeira vermelha.
Ayrton cruza a linha de meta na frente, depois de ter ultrapassado Prost, e festeja como se tivesse alcançado a sua primeira vitória, apesar de saber que isso não acontecera
A polémica decisão de Ickx fez correr rios de tinta na imprensa e suscitou as mais diversas reações – muitos acusando o belga de favorecer a McLaren equipada com motor Porsche, equipa em que competia no Mundial de Marcas. No final da corrida, Ayrton explicava a Hawkridge – «Está vendo, é o que dá desafiar o establishment!»
Alain Prost obtinha assim a sua primeira vitória no Mónaco. Uma meia vitória já que como não tinha sido cumprida mais de metade da distância total da prova, os seis primeiros apenas somariam metade dos pontos.
Ironicamente, a decisão de Ickx iria custar o título a Alain Prost naquela temporada, porque mesmo que o francês tivesse ficado apenas em segundo, seria suficiente para ter mais pontos do que Niki Lauda no final da temporada. O próprio Prost admitiu que estava disposto a ceder a liderança da corrida a Senna em benefício das suas aspirações ao título.
24 anos mais tarde, o piloto francês, explicou a Malcolm Folley, no seu livro “Senna vs Prost”, a sua versão dos acontecimentos no GP do Mónaco de 1984: «Por causa daquele meio ponto, Mónaco não foi uma vitória, foi uma má memória. Se pensarmos que se cumpríssemos mais duas voltas eu teria a classificação por inteiro, e mesmo que Senna me ultrapassasse, eu teria somado seis pontos e não quatro e meio. Mas ninguém sabe o que teria acontecido se continuássemos a correr. O Nigel bateu, o Niki bateu e eu abrandei, porque estava com crescentes problemas nos travões. Sempre acreditei que a corrida ia ser interrompida. Circularam rumores por causa do Jacky Ickx ser piloto Porsche teria interrompido a corrida. Foi lamentável ouvir isso. Se olharmos para trás, mesmo naquela época, o Ayrton, por causa da sua atitude competitiva, já tinha poder e influência sobre os media. Ele era novo, era normal que atraísse atenção. Não tenho problemas com isso, mas a polémica com o Jacky Ickx, quando a pista estava cada vez mais molhada e perigosa, não foi aceitável.»
Inconsolável e meio emudecido, apesar do seu surpreendente segundo lugar e de ter, pela primeira vez na sua carreira na F1, fixado a volta mais rápida ao circuito, Ayrton Senna bebeu quase um jarro de água na conferência de imprensa após o Grande Prémio. O alemão Stefan Bellof, o outro herói do dia, festejava o seu feito, que acabaria por lhe ser retirado.
Apesar de ter levado o seu Tyrrel 012-Cosworth do último lugar da grelha a cruzar a linha de meta em 3º, Bellof foi desclassificado porque o seu carro tinha menos 50 kg que o peso regulamentar. O talentoso alemão, que era apontado como o futuro grande adversário de Senna, viria a morrer prematuramente em 1985 num acidente com um Porsche de Sport-Protótipos em Spa-Francorchamps, quando à saída de Eau Rouge tentou uma ultrapassagem impossível a Jacky Ickx, o mesmo que um ano antes impedira Ayrton Senna de conquistar a sua primeira vitória na F1, numa decisão que o jornalista Reginaldo Leme explica mais por razões de auto-defesa do que favorecimento: «Ele deve ter pensado – Estou dentro do regulamento vou acabar com isso antes que dê merda.»
Depois da cerimónia do grand stand (o Mónaco é o único GP que não tem pódio), com o Príncipe Rainier a entregar a Alain Prost, o namorado da sua filha Stéphanie, o prémio da vitória, um não muito bem humorado Ayrton festejou o sabor amargo do seu êxito num jantar com Hawkridge e Reginaldo Leme, em vez de comparecer, como era da praxe, no baile de gala do Príncipe. «Ele tomou um porre espetacular de mau vinho», contou Reginaldo Leme.
Apesar de se sentir injustamente arredado da vitória, Ayrton sabia que a exibição do Mónaco o colocara nas primeiras páginas de jornais de todo o mundo e o tinha lançado definitivamente no estrelato no Brasil, onde a sua “dança da chuva” no Mónaco foi recebida com a sofreguidão de alegrias de um povo que lutava para se desafivelar da ditadura militar, liderada pelo presidente da junta militar João Figueiredo.
Em abril de 1984, o movimento “Diretas já”, que exigia eleições livres, ganhava crescente apoio popular e o regime via-se obrigado a reprimir essa influência crescente de um movimento que integrava os futuros rostos da política ativa brasileira – Tancredo Neves, Dante de Oliveira, Lula da Silva ou Fernando Henriques Cardoso.
A cantora Fáfá de Belém dava a voz ao movimento que integrava muitos intelectuais, artistas e desportistas, como o futebolista Sócrates ou os músicos Chico Buarque e Martinho da Vila. Foi este movimento que acabou por acelerar a queda do regime militar, que se consumaria em janeiro de 1985, com a eleição de Tancredo Neves para a presidência do Colégio Eleitoral.
As convulsões sociais e a pobreza tornavam os brasileiros um povo carente de figuras marcantes, de ídolos. Ayrton Senna mostrava todas as qualidades necessárias para abrir o coração do seu povo – simplicidade, talento, tímida simpatia e sobretudo um grande amor, imediatamente correspondido – o amor ao Brasil.
In “A Paixão de Senna”, Oficina do Livro, 2014
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