Em 2006, penúltimo ano em que a prova terminou nas margens do lago Rosa, às portas da capital do Senegal, reavivo a memória desses tempos em que surgia essa forma mágica de aventura, reinventada de acordo com os cânones da mediatização, as exigências do marketing e o ritmo da modernização.
Mas, já nesses anos do século XXI, o Dakar aventura pura já pertencia ao passado, diluído, em nome da segurança, o carácter de aventura de um desafio renovado em cada etapa.
A competição era então feita de episódios rocambolescos, perigos vários. O insólito corria à mesma rotação do inesperado, o que proporcionava situações algo impensáveis em qualquer competição ao mais alto nível. Mas, esse era o sortilégio da prova, feita da coexistência de amadores, cada vez menos artesãos e mais senhores de equipamentos sofisticados, e dos adestrados profissionais no domínio da tecnologia de ponta.
O Dakar era, no entanto, o ambiente único do bivouac, espaço mágico recriado em cada noite após a maquinal montagem da tenda e desejo de uma cervejita bem gelada, tão rápida a molhar a garganta seca como a passagem das máquinas levantando nuvens de pó.
O ritual de procurar saber as peripécias, o dia-a-dia dos portugueses, os relatos, por vezes dramáticos, dos heróis anónimos da grande clássica, o corre-corre da escrita, o stress do envio das peças, facilitado, nos últimos tempos, pelo prodigioso mundo das comunicações, continuava a marcar o quotidiano do jornalista colocado no meio do … nada!O Dakar perdeu, é certo, algum encanto com o formatar ajustado às padronizadas exigências de uma competição vista como verdadeira montra tecnológica, mas o toque exótico do inesperado estava ao virar da esquina.
Na última edição africana, um grupo de jornalistas portugueses – Alexandre Correia, Carlos Filipe, João Picado e eu próprio – chegado à capital senegalesa ia alta a noite, vasculhou os lugares mais esconsos e tenebrosos do bas fond local em busca do hotel marcado.
Entre becos e vielas de cheiro nauseabundo, tresandando a imundice que cobria a terra seca e poeirenta, o estafado carrito, sem suspensão e prestes a perder o escape, lá foi na onda, serpenteando entre casas com janelas de grades e arame farpado nos muros, até se imobilizar numa rua sem saída, onde mal dava para fazer meia-volta. Eis que, iluminados pelos faróis do automóvel, vultos fantasmagóricos começam a movimentar-se por detrás de cortinas que nunca tinham sido apresentadas ao sabão Tide. A porta abre-se, e dela sai meia-dúzia de avantajados senegaleses, estremunhados e pouco dados a conversas em plena madrugada.
Em ambiente de algazarra, por corredores sinistros, lá chegámos aos quartitos, por corredores onde se abriam e fechavam portas, deixando perceber ocupação intensa…
No terraço, varrido por um vento quente, condenados pela inesperada lei seca, imaginamos-nos num qualquer território palco da Intifada.
O hotel acolhedor, limpo e confortável, imaginado ia a madrugada alta, para um corpo com défice de descanso e sonhado para o final da maratona, era, de facto, um delírio.
Como delirantes eram (quase) todas as estórias do Dakar africano.