Big in Japan: Há 29 anos, o primeiro título mundial de Ayrton Senna

07/10/2017

Há quase 29 anos, no dia 30 de outubro de 1988, Ayrton Senna conquistava o seu primeiro título mundial de Fórmula 1 no mesmo circuito onde Vettel e Hamilton vão lutar palmo a palmo na corrida ao título. Pretexto para recordar uma das mais épicas corridas da história da Fórmula 1

A época de 1988 marcou o início da rivalidade Ayrton Senna com Alain Prost, que iria marca a Fórmula 1 nos anos seguintes. Os dois eram companheiros de equipa na McLaren-Honda e aquela época foi uma questão a dois, já que nenhuma outra equipa ou piloto parecia poder fazer sombra ao duo maravilha da McLaren-Honda.

O debate pelo título conheceu vários episódios, sobretudo na reta fina do campeonato, onde Ayrton Senna parecia estar a perder terreno para Prost. A pressão sobre Ayrton Senna aumentou substancialmente uma semana depois do GP de Portugal, no Estoril, com nova vitória de Alain Prost no GP de Espanha em Jerez, onde Senna não foi além de um 4º lugar, devido a problemas técnicos.

Nos bastidores travava-se também uma guerra política, com o Presidente da FISA, Jean Marie Balestre a exigir da Honda, tratamento igual e motores idênticos para os dois pilotos da equipa nas duas últimas corridas da temporada, já que o seu compatriota e amigo, Alain Prost queixava-se insistentemente do tratamento preferencial dado pela Honda a Ayrton Senna. A Honda respondeu, laconicamente, que sempre dera igual tratamento aos dois pilotos e que frequentemente sorteava os motores para os dois pilotos.

A marca japonesa não iria permitir que as suspeitas instigadas por Alain Prost ensombrassem o apoteótico Grande Prémio do Japão, onde a maior parte dos observadores acreditavam que Ayrton Senna iria arrumar definitivamente a questão do título.

A prova disputou-se a 30 de outubro de 1988 no circuito de Suzuka, propriedade da Honda e frente a mais de 100 mil espectadores. A popularidade da F1 naquele país tinha crescido exponencialmente com o envolvimento da Honda e com Ayrton Senna, que os japoneses identificavam como um novo herói, capaz dos maiores feitos com um carro com um motor japonês. Ayrton Senna tornou-se um verdadeiro fenómeno de popularidade no Japão e para isso muito contribuíram as épicas decisões dos títulos que tiveram como palco o circuito nipónico.

Tudo parecia alinhado para Ayrton Senna confirmar o seu favoritismo quando o brasileiro arrancou a sua 12ª pole position da temporada, reservando assim o primeiro lugar na grelha de partida, ao lado do inevitável Alain Prost.

Apesar da máxima concentração nos momentos que antecedem à partida, Senna confessou que naquele momento era assaltado por uma ponta de nervosismo: «A partida de um GP de F1 é um momento surreal, no meio daquele tumulto todo, estamos ali, prestes a entrar noutra dimensão. Aquela era a partida mais importante da minha carreira e foi a única que falhei durante toda a época. Quando larguei a embraiagem o motor parou, pu-lo a funcionar e o motor voltou a parar.»

Para os milhões de espectadores que acompanhavam a prova pela televisão, a altas horas da madrugada em Portugal e no Brasil, o braço no ar de Senna, a avisar os outros pilotos que o seu motor se calara, era sinónimo da derrota do brasileiro. Um por um e em plena aceleração de arranque, 14 monolugares passaram tangentes ao McLaren número 12 estacionado na pista. Por milagre nenhum lhe tocou, o que podia ter consequências dramáticas.

Quando muitos adeptos se preparavam para desligar o televisor e ir dormir, outro milagre teve lugar. Aproveitando a ligeira inclinação da reta da meta em Suzuka, Ayrton Senna conseguiu engrenar uma marcha e acordar o motor Honda: «Tive sorte em conseguir repor o motor, mas pensei de imediato que nada podia fazer, mesmo puxando ao máximo, pois acreditava que era impossível apanhar o Alain. Ele estava em primeiro com a pista livre e um carro semelhante ao meu para poder regular o andamento de forma a que mais lhe conviesse.»

Quando muitos adeptos se preparavam para desligar o televisor e ir dormir, outro milagre teve lugar. Aproveitando a ligeira inclinação da reta da meta em Suzuka, Ayrton Senna conseguiu engrenar uma marcha e acordar o motor Honda

Rui Freire, enviado-especial do Autosporta Suzuka, recorda que na sala de imprensa poucos acreditavam na vitória de Ayrton, que seguia no meio do pelotão. Um erro de principiante havia comprometido o tão desejado título.

O que se seguiu foi uma das mais belas páginas da história do automobilismo e um Grande Prémio inesquecível para os milhões que acompanharam em direto a corrida.

Fazendo uso da tremenda superioridade técnica do seu McLaren e colocando todo o seu talento e determinação em pista, Ayrton Senna iniciou uma missão impossível e começou a recuperar lugares de forma absolutamente vertiginosa. Tanto, que no final da segunda volta já era sexto, a nove segundos de Alain Prost, que liderava a corrida.

O brasileiro continuou a andar a fundo, deixando para trás mais três pilotos e colocando-se no terceiro lugar, com apenas 9 voltas cumpridas. A missão impossível tornava-se agora possível, ainda mais quando começou a cair uma chuvinha miudinha sobre o asfalto de Suzuka. Mestre na arte de controlar o carro em difíceis condições de aderência, Ayrton aproveitou a ocasião para se desembaraçar do segundo classificado e partir, livre de mais obstáculos, no encalce de Alain Prost: «Fui andando cada vez mais rápido e entretanto surgiu um chovisco que tornou a pista mais escorregadia, obrigando toda a gente a levantar o pé, o que me favoreceu, a partir daqui foi a grande luta.»

Na vigésima volta, Senna encostou-se na traseira do McLaren de Alain Prost, onde se manteve, pacientemente durante oito voltas até que, na dobragem de um concorrente atrasado Andrea de Cesaris Alain Prost abriu o espaço que Ayrton precisava para se colocar no comando da prova, para júbilo do público japonês. De último a primeiro em apenas 28 voltas, a proeza de Ayrton não tinha paralelo na história moderna da disciplina, mas agora era preciso segurar a posição e não deitar tudo a perder. A dez voltas do final da corrida Prost aumentou a pressão, tentando forçar um erro do brasileiro, mas a chuva começou a cair com mais intensidade: «A pista ficou muito escorregadia e com os pneus slicks passou a ser uma lotaria pois tanto podia ganhar como acabar fora de pista e o mesmo se passava com o Alain». Consciente dos perigos dessa lotaria, Senna apontava para o céu em cada passagem pela reta da meta, apelando aos deuses terrestes, neste caso à direção de prova, que terminasse a corrida. Foi nestas últimas voltas na nuvem de água de Suzuka que Ayrton Senna voltou a ter uma experiência mística que mais tarde descreveu com detalhe em entrevista à “Playboy: «Mesmo orando, eu estava superconcentrado, me preparando para uma curva longa, de 180 graus, quando vi a imagem de Deus. Ele era tão grande, tão grande. Não estava no chão. Estava suspenso com a roupa de sempre, a cor de sempre e uma luz em volta. Seu corpo inteirinho subia para o céu, alto, alto, alto, ocupando todo o espaço. Ao mesmo tempo em que tinha essa imagem incrível, eu guiava um carro de corrida. Guiava com precisão, com força, com tudo. É de enlouquecer, não é? É de enlouquecer!».

A corrida terminou com a vitória de Ayrton Senna que batia com as mãos no capacete enquanto urrava um dicionário completo de vernáculo em português pelo rádio da equipa, dedicando um agradecimento muito especial a Steve Nichols, o projetista americano que lhe tinha colocado nas mãos o mais perfeito Fórmula 1 jamais construído. Um carro com que Ayrton Senna fixou um novo recorde de pole positions (12) e vitórias (10) numa só época. Becotinha cumprido o seu sonho de criança e aos 28 anos sagrava-se Campeão do Mundo de Fórmula 1, juntando o seu nome ao de Fittipaldi e de Piquet no restrito palmarés da disciplina.

No final, quando se dirigia para a conferência de imprensa, acompanhado por alguns jornalistas, o piloto disse a um jornalista brasileiro que tinha visto Deus. O jornalista, meio malicioso, perguntou-lhe, «Como está ele, deve estar velhinho, não?» Ayrton estacou o passou e com o dedo indicador em riste disse: «se não parar com essa gozação, nunca mais falo para você.»

No final da conferência de imprensa coletiva, Ayrton Senna dirigiu-se para o estúdio de televisão improvisado no circuito, onde iriam decorrer as entrevistas unilaterais para ser transmitidas para todo o mundo.

As entrevistas unilaterais eram um engenhoso expediente que Bernie Ecclestone inventara para cobrar mais uns milhares de dólares às televisões em busca de uma aparente exclusividade.

Rui Freire foi o jornalista português convocado à última hora para documentar aquele momento histórico: «Normalmente quem fazia as entrevistas unilaterais para a RTP era o Domingos Piedade, mas naquele dia ele tinha um avião para apanhar cedo e sugeriu ao Adriano Cerqueira que fosse eu a fazer a entrevista. Eu estava nervosíssimo, e até a puxar um bocadinho para que a decisão do título fosse levada para Adelaide. Quando cheguei ao compound onde decorriam as entrevistas, esperei pela minha vez. Lá dentro estavam numa mesa o Alain Prost e o Ayrton Senna e o Bernie Ecclestone a gerir o tempo do satélite. Quando entrei, ele explicou-me que a cinco segundos de cortar o sinal me faria uma contagem decrescente com os dedos.

+ Amanhã leia “Suzuka 1999: Guerra aberta entre Prost e Senna”

Comecei por fazer uma pergunta ao Alain Prost, que cordialmente respondeu que o título do Ayrton era inteiramente justo pelo que ele fizera durante toda a época. Depois virei-me para o Ayrton e fiz-lhe três ou quatro perguntas em português, que ele respondeu com nítida emoção. O mais engraçado é que eu estava tão nervoso que lentamente ia baixando o microfone e ele, por três ou quatro vezes, agarrou-me no braço para colocar o microfone na posição certa.

Duas semanas depois estava na mesa dos jornalistas brasileiros no churrasco da Marlboro em Adelaide e o Ayrton chegou, depois de cumprimentar toda a gente, virou-se para mim e disse em tom brincalhão:

– Ó cara, quer que eu pegue no seu bracinho outra vez?»

Para comemorar o seu título, Ayrton ofereceu um jantar a toda a equipa e amigos no seu hotel em Suzuka. Depois de alguns whiskys e uma corrida de videogame com Emanuele Pirro, piloto de testes da Honda, Ayrton pediu a Jo Ramírez que o «beliscasse, para ver se é mesmo verdade. Se sou mesmo campeão do mundo.» Antes de se ir deitar, pediu um vídeo da prova «que fiquei revivendo a noite toda».

Ayrton já não precisava de sonhar acordado e podia encarar sem pressão o último GP da época em Adelaide, que seria vencido por Alain Prost.

Para comemorar o seu título, Ayrton ofereceu um jantar a toda a equipa e amigos no seu hotel em Suzuka. Depois de alguns whiskys e uma corrida de videogame com Emanuele Pirro, piloto de testes da Honda, Ayrton pediu a Jo Ramírez que o «beliscasse, para ver se é mesmo verdade. Se sou mesmo campeão do mundo.»

O Professorestava vencido, mas não convencido e acreditava que com o fim da era turbo e o regresso dos motores atmosféricos com que Senna nunca havia competido ele podia bater o rápido e competitivo brasileiro na época seguinte.

A hostilidade envernizada entre os dois pilotos estava prestes a estalar e 1989 seria o ano da guerra aberta entre Senna e Prost, uma das maiores rivalidades da história do desporto, comparável à de Bjorn Borg e John McEnroe no ténis ou à de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi no futebol.

Excerto de “A Paixão de Senna” de Rui Pelejão, Oficina do Livro, 2014

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