GP de São Marino 1994: O dia em que Senna passou a herói eterno

01/05/2020

O GP de São Marino de 1994 ficou para a história da Fórmula 1 como o seu momento mais negro. No sábado, dia 30 de abril, o mundo desportivo já havia chorado a morte de Roland Ratzenberger (Simtek), mas o domingo reservava uma outra infeliz surpresa, desta feita com consequências impressionantes para a Fórmula 1 – Ayrton Senna embatia, ao volante de um Williams, na velocíssima curva de Tamburello e o mundo susteve a respiração. Algumas horas depois, o mundo chorou de forma coletiva a morte de um dos maiores pilotos de sempre da F1.

Além do acidente de Barrichello e da morte trágica de Ratzenberger, o fim de semana do GP de São Marino tinha em preparação mais um golpe de teatro cruel. Visivelmente combalido pela morte de Ratzenberger, mas também pelo acidente de Rubens Barrichello, Senna havia ainda assim conseguido a pole position para a prova de domingo. No entanto, o seu semblante esteve sempre carregado.

Na manhã do dia da corrida, num momento raro, Senna descrevia em plena sessão de ‘warm-up’ (30 minutos para últimas afinações) o circuito para um canal francês, a TF1, onde Alain Prost, outrora inimigo figadal, era então comentador. Deu-se uma especial saudação de Senna a Prost, num momento que horas depois pareceu assumir os contornos de um homem conhecedor de um destino fatal e com vontade de enterrar os ‘machados de guerra’: “Para começar, um olá especial ao nosso querido amigo Alain. Todos sentimos a tua falta, Alain“, atirou Ayrton naquele trecho que ficou para a posteridade. Prost disse mais tarde, ainda antes da prova, que tinha sido um momento “inesperado, mas de saudar”…

Essa aura sobrenatural que paira sobre o comportamento de Ayrton é, de certa forma, reforçada pela sua forma de estar no resto do fim de semana, como depois também se soube por histórias avulsas. Algum tempo depois da trágica tarde de 1 de maio, o médico da Fórmula 1 e bom amigo de Senna, Sid Watkins, revelou que, em conversa privada após o acidente de Ratzenberger, sugeriu ao brasileiro que abandonasse a modalidade, uma vez que nada mais tinha a provar com os seus três títulos mundiais. Senna terá retorquido que tinha de competir. No dia 1 de maio, Senna era uma vez mais a figura de proa, ocupando a primeira linha juntamente com Michael Schumacher.

David Brabham, no outro Simtek, estava em 24º lugar, apenas dois atrás de Pedro Lamy, que era o 22º na grelha com o seu Lotus-Mugen Honda. Para muitos, a simples participação de Brabham na corrida é um dos atos mais heroicos do fim de semana, mas o piloto e a formação liderada por Nick Wirth perceberam que esta era a forma de honrar a memória do austríaco falecido escassas horas antes.

Prenúncio de morte

Nas bancadas, os característicos ‘tifosi’ que só têm olhos para a sua Ferrari, esperavam ver um dos carros italianos na frente, desta feita com a particularidade de Nicola Larini ocupar o lugar de Jean Alesi no 412 T1 com o número 27 em virtude de um acidente do francês durante testes em Fiorano. Mesmo antes dos acidentes de Imola, outros pilotos vão sentindo os efeitos dos novos carros mais difíceis de conduzir e mais instáveis, como também já acontecera com Lehto antes do arranque da temporada.

Na partida para a corrida, as atenções focam-se em novo acidente, mais um, que tem como protagonistas JJ Lehto (Benetton) e Lamy, que não conseguiu evitar o carro estacionário do finlandês, que nem chegou a arrancar por ter deixado ‘calar’ o motor. Os destroços causados pelo violento embate entre Lehto e Lamy causam ferimentos a nove espectadores nas bancadas.

A corrida prosseguiu atrás do safety car, um simples Opel Vectra de estrada sem a mínima apetência para velocidades de circuito, muito menos para liderar o pelotão de forma a que os carros mantivessem os pneus com a temperatura adequada. Quando a pista foi declarada ‘limpa’ de destroços do acidente entre o Benetton e o Lotus, Senna liderava, com Schumacher atrás e Gerhard Berger (Ferrari) em terceiro.

Morte em direto

À sétima volta, na entrada para a longa esquerda de Tamburello – na qual outros pilotos já haviam sofrido pavorosos acidentes, como Berger em 1989 – o Williams de Senna falhou a descrição da curva. Num ápice, o carro dirige-se rumo ao muro de betão exterior a uma velocidade de 306 km/h – embatendo no mesmo a 211 km/h após desaceleração do piloto – para um acidente com a parte dianteira direita do Williams. Os destroços voltavam a povoar a pista e a escapatória, obrigando à interrupção da corrida.

Apesar da rápida aproximação dos comissários de pista, a ajuda ao piloto foi demorada. Senna mantinha-se inerte a bordo do Williams, com um ligeiro menear de cabeça sem continuidade a dar alguma esperança de que estivesse apenas inconsciente mas são. Contudo, rapidamente se percebeu que o brasileiro era um caso severo.

Os carros pararam na reta da meta e muitos dos pilotos procuraram saber mais informações sobre o sucedido, perante o próprio desconhecimento dos seus superiores. Na Williams, porém, a agitação era muita e nalguns rostos as lágrimas corriam enquanto a televisão transmitia em direto a tentativa de salvação do herói de milhões. As imagens aéreas a partir do helicóptero apanharam, a dado momento, uma imensa poça de sangue junto a Ayrton, num raro momento em que o lençol que cobria as operações se descuidava.

Num outro exemplo de descoordenação irónica daquele fim de semana, Eric Comas, o mesmo piloto que tinha sido salvo por Senna em Spa-Francorchamps, em 1992, entrou em pista, determinado a correr novamente, sem que ele ou a sua equipa soubessem que a mesma tinha sido interrompida. Comas foi ‘travado’ pelos próprios comissários na ‘Tamburello’ e, por pouco, não causava outra tragédia. Comas garante que não recebeu qualquer indicação de interrupção da prova e, num dado revelador por omissão, decidiu abandonar a corrida logo ali, depois de observar a situação de Senna. Outro piloto com grande amizade a Senna, o austríaco Gerhard Berger, também não escondeu o seu incómodo e preocupação nas boxes, abandonando a corrida pouco depois do seu reinício, apontando problemas com o seu Ferrari. Curiosamente, a equipa italiana indicaria depois que nunca encontrou nada de errado com o 412 T1 do austríaco.

O espetáculo não pode parar

A corrida viria a ser retomada depois do acidente de Senna, com Schumacher a vencer de forma tranquila ao volante do seu Benetton, à frente de Nicola Larini (Ferrari) e de Mika Hakkinen (McLaren). Gerhard Berger ainda animou os adeptos da Ferrai logo após o reinício da prova, liderando em pista (no somatório dos tempos com os anteriores à interrupção, Schumacher mantinha a liderança), mas abandonou com queixas ‘misteriosas’ sobre o comportamento do seu carro.

Por fim, o helicóptero levou Senna para o Hospital de Bolonha, onde, pouco depois das 19h locais, viria a ser declarada a sua morte cerebral, numa notícia que causou choque e incredulidade em igual medida.

A causa do acidente foi alvo de grande discussão ao longo dos anos subsequentes, sendo o acidente de Senna o ponto mais baixo também da carreira vitoriosa de Adrian Newey como projetista. Alvo de muitas teorias e de grande especulação, houve quem apontasse a baixa pressão dos pneus devido ao período de safety car lento (forçando o contacto do fundo do carro com o asfalto e consequente perda de controlo) ou, naquela que ficou como causa provável, a quebra da coluna de direção que Senna havia pedido para ser alterada. Esta foi, aliás, a causa apontada pela justiça italiana, que aponta a soldadura na extensão de 1,8 cm como mal efetuada. Com o esforço, a mesma terá cedido, perdendo-se o elo de ligação entre o piloto e as rodas da frente.

Já a causa da morte foi mais rápida de encontrar: um tirante da suspensão partiu-se e penetrou na viseira do capacete do piloto, causando dessa forma lesões irreparáveis no cérebro de Senna. No fato do piloto, descobriu-se depois, estava uma bandeira austríaca com que pretendia homenagear Roland Ratzenberger na eventualidade de vencer a prova. Não viria a desfraldá-la.

O choque foi grande. Imenso no Brasil, mas também em Portugal e no Japão, países onde era idolatrado por muitos. A morte de Senna teve um significado ainda maior por ter acontecido em direto para milhões de espectadores, em plena hora de almoço de um domingo, na era da globalização da Fórmula 1 enquanto desporto televisivo. A transmissão por canais pagos era ainda uma congeminação que só o futuro contemplaria e as corridas, de forma mais ou menos fervorosa, faziam parte das tradições de domingo.

Chave para a segurança

Por mais trágico que possa parecer, deve-se à morte de Senna o grande salto dado na segurança da Fórmula 1 (de forma algo injusta para Ratzenberger). A Grand Prix Drivers’ Association (GPDA), renascida na manhã de dia 1 para melhorar a segurança dos circuitos e dos carros, ganhou energia e dessa onda de choque nasceu muito do que viria a ser aplicado nos carros posteriores para impedir novos acidente mortais. E, com efeito, a introdução de novas medidas de segurança trouxe consigo uma robustez impressionante aos F1 contemporâneos, como disso foi exemplo o pavoroso acidente de Robert Kubica no Canadá em 2007.

Tanto os monolugares, como os circuitos passaram a ter condições de segurança muito superiores: os primeiros com uma resistência cada vez mais fenomenal e os segundos com escapatórias e proteções eficazes e centros médicos muito avançados. Essa foi uma das lições e um dos legados finais que o piloto canarinho deixou para a Fórmula 1, além dos diversos relatos de brilhantismo em pista e das demonstrações de talento que irão perdurar por muitos anos.

*Artigo escrito originalmente em 1 de maio de 2019.

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