A certo ponto no filme ‘Ferrari’, realizado por Michael Mann, o enigmático Enzo Ferrari, interpretado por Adam Driver, diz à sua amante, Lina Lardi (Shaileene Woodley), que foi necessário construir um muro para continuar o projeto da marca após a morte de dois dos seus amigos durante uma corrida, em Monza, muito anos antes. Esse muro a que o fundador da marca italiana se refere foi o que construiu para o separar da morte. Mas, por mais alto que fosse, a sensação de perda sempre rondou o Comendador. O filme, agora nos cinemas, retrata precisamente essa simbiose entre vida e morte na procura constante pela vitória e pelo cumprimento dos sonhos.

Retratar Enzo Ferrari em ficção é sempre tarefa árdua. O italiano, fundador da Ferrari, uma das marcas mais emblemáticas do mundo, sempre carregou consigo uma aura impenetrável, árdua e até hipnotizante que reforçou com a constante presença de óculos escuros e as cada vez mais raras aparições públicas nos anos finais da sua vida. Mas Michael Mann, realizador de outros filmes de sucesso, como ‘Heat: Cidade sob Pressão’, ‘Colateral’, ou a saga ‘Transformers’, aceitou o desafio.

Paralelamente, Mann rodeou-se de um elenco em que Adam Driver foi ‘trabalhado’ para se aparentar com Enzo, Penélope Cruz transformou-se em Laura Ferrari, Shailene Woodley converteu-se em Lina Lardi e Gabriel Leone num piloto de nobreza, Alfonso di Portago.

A história foi escrita por Troy Kennedy Martin e tem por base a obra sobre a vida de Enzo Ferrari, da autoria de Brock Yates (‘Enzo Ferrari: O Homem, Os Carros, As Corridas, A Máquina’), retratando o ano de 1957, no qual o fundador da marca italiana estava envolta em convulsões profundas tanto a nível profissional, como pessoal.

No Pós-Guerra, numa Itália ainda em reconstrução, Enzo Ferrari é um homem amargurado – numa definição que, Adam Driver (brilhantemente transformado através das próteses e indumentárias) consegue retratar com fidelidade. A morte do seu filho, Dino, um ano antes, vítima de distrofia muscular é um rude golpe para Enzo, distanciando-o ainda mais da sua mulher, Laura Ferrari, interpretada por Penélope Cruz noutro desempenho de altíssimo nível. A Ferrari, por outro lado, acumula maus resultados financeiros e a sua subsistência está em risco.

Paralelamente, o Comendador encontra paz nos braços de Lina Lardi, a sua amante, com quem tem uma segunda família fora de Modena. Dessa relação nasce Piero Lardi, filho ilegítimo sobre quem paira a dúvida do reconhecimento (ou não) como um ‘verdadeiro’ Ferrari. Esta é a trama pessoal do filme, que é muito bem explorada por Mann, bem como as emoções de cada personagem. A outra parte é a das corridas, que surge quase como um cenário de fundo para a vida de Enzo. É na competição automóvel que Enzo Ferrari procura o seu verdadeiro consolo e é a competição que lhe dá os encontros mais frequentes com a morte – aquela de que procura abstrair-se por um muro. Enzo deu-lhe a designação de ‘alegrias terríveis’, o título também da sua biografia.

Várias são as referências a pilotos ou figuras do automobilismo que morreram a cumprir o seu sonho: Giuseppe Campari, Baconin Borzacchini ou Achille Varzi, além, claro de Eugenio Castellotti e de Alfonso de Portago, as quais vemos no filme. O ‘fantasma’ da morte surge, então, a pautar o enredo, como que flutuando sobre a imensidão cinematográfica de todos os personagens.

Talvez seja essa mesma razão que leva até a mãe de Enzo, Adalgisa Bisbini, a lembrar, a certo ponto, o irmão de Enzo, Alfredo Junior, também conhecido pelo apelido Dino, morto na Primeira Guerra Mundial. Mas é outro Dino que nos evoca a constante separação fruto da perda, o filho de Enzo e de Laura Ferrari, cuja morte em 1956 traçou a rutura definitiva do casamento entre ambos.

A outra parte do filme retrata, precisamente, a história da marca e do seu crescimento na década de 1950. As dificuldade financeiras são um dos motivos que levam Enzo a apostar forte na edição de 1957 das Mil Milhas (‘Mille Miglia’), uma competição histórica que levava máquinas e pilotos em ritmo de competição por estradas italianas. Face à rivalidade crescente da Maserati – também em necessidade de financiamento –, Enzo é recordado da velha máxima ‘vence ao domingo, vende na segunda’ para reforçar o papel da competição como veículo de marketing.

Neste subenredo encontramos a tentativa de ascensão do jovem Alfonso de Portago na Ferrari, sendo um dos quatro pilotos inscritos para as Mille Miglia de 1957, juntamente com Piero Taruffi, Wolfgang von Trips e Peter Collins. Uma vez mais, se se quiser pensar na ironia do destino, três daqueles quatro pilotos viriam a perder a vida ao volante de carros de Maranello em anos subsequentes.

Adam Driver está em altíssimo nível a dar vida a Enzo Ferrari, recorrendo à sua modularidade e plasticidade na transmissão de emoções, bem como Penélope Cruz, colocada no papel da mulher ‘presa’ ao seu passado e à morte do seu filho, Dino, vendo também Enzo afastar-se rumo a outra mulher, Lina e a Piero.

Naturalmente, chegados até aqui, quem pensar que vai ver um filme sobre corridas ou sobre a construção da Ferrari enquanto império automóvel, pode-se sentir defraudado. Haverá também aqueles que, olhando apenas pelas ‘ciências’ da cinematografia, analisam excessivamente os enredos e o compasso dos mesmos, lamentando a falta de mais ação, como se isso fosse condição sine qua non para cada vida humana.

‘Ferrari’ é um filme também sobre corridas, mas há muito mais. Há sempre muito mais. Há um Enzo em ebulição pessoal, Laura em aceitação, Lina na expectativa e Portago a fervilhar de ambição. Todos partilham o significado incorpóreo da paixão – pelas máquinas, pela glória e por alguém. Mesmo que isso lhes custe a vida.

Em suma, ‘Ferrari’, de Michael Mann, pode ter as suas falhas enquanto filme, na sua mais pura aceção da palavra, nomeadamente no exagero de imagens gráficas (uma delas é particularmente desnecessária…) ou nalguma lentidão da trama, mas enquanto filme documental está entre os melhores produzidos.