Raid TT: Guerra com a França e paz com o bucho

29/03/2018

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O Clube Escape Livre levou à estrada, ou fora dela, o 9º Raid do Bucho e Outros Sabores. Uma aventura TT por trilhos de neve e lama em que foi preciso entrar nas guerras napoleónicas e defrontar o temível bucho raiano

O General inverno travou as tropas napoleónicas na invasão da Rússia, mas não impediu os “dragões” do corpo expedicionário do Raid do Bucho e Outros Sabores de marchar sobre a Freineda para prestar assistência às tropas Peninsulares lideradas pelo Duque de Wellington.

Foi na Freineda, pequena aldeia do concelho de Almeida, que Arthur Wellesley, 1º Duque de Wellington, montou o seu quartel-general em 1812. Era dali que comandava as tropas luso-britânicas, comando que o distinguiu como um mestre da estratégia defensiva, o catenaccio militar, imortalizando-o como um dos grandes génios militares da sua época.

Do outro lado da barricada, outras personagens célebres, como o temível Loison, o atroz general de Napoleão que praticou atos de extrema crueldade durante a ocupação francesa e que encontrou nas regiões da Guarda, Almeida e Sabugal palco para as suas sanguinárias expedições punitivas contra a heróica resistência portuguesa. Loison havia perdido um braço num acidente de caça e o povo chamava-lhe “O maneta”, daí vindo a expressão “ir para o maneta”, ou seja, ir para a tortura ou para a morte.

É curioso ver como a má memória do Maneta ficou gravada no cancioneiro popular, basta ler estes versos aguçados como um sabre de cavalaria:

“Entre os títeres generais

entrou um génio altivo

que ou era o Diabo vivo

ou tinha os mesmos sinais…

Aos alheios cabedais

lançava-se como seta,

namorava branca ou preta,

toda a idade lhe convinha.

Consigo três Emes tinha:

Manhoso, Mau e Maneta.”

Todo o território da raia é um imenso manancial de história e histórias das invasões napoleónicas e por isso um bom pretexto para ir descobrindo trilhos off-road à medida que se marcha sobre o bucho, a iguaria raiana que empresta o nome a este passeio organizado pelo Clube Escape Livre, a simpática guerrilha que há anos luta contra o isolamento do interior com uma artilharia de boa ideias, iniciativas e manobras de descoberta de um dos territórios mais desconhecidos de Portugal.

Luis Celínio, marechal de campo e grande estratega do Clube Escape Livre, explica os planos da batalha do bucho que se inicia com o aquartelamento das tropas no Hotel Vanguarda, na Guarda: “Na sexta-feira é o dia de boas vindas com um jantar seguido de uma interessante visita noturna ao Museu da Guarda, com um património rico e diversificado do concelho. A etapa de sábado tem, da parte da manhã, uns trilhos totalmente novos desenhados na Serra da Estrela para depois à tarde fazermos um circuito de TT com um grau de dificuldade técnica mais elevada para os participantes poderem avaliar as capacidades das suas montadas e a sua perícia em TT.

No domingo, último dia do programa, o percurso começa de novo na Guarda e tem como destino obrigatório a Freineda. É nessa aldeia que se realiza a tradicional festa do bucho, que dá nome ao passeio. É também ali que fazemos uma reconstituição histórica das Guerras Peninsulares.”

Tudo a postos, 43 veículos de cavalaria 4×4 de todas as estirpes, desde pick-up Mercedes a Defender, de Dacias Duster a um novinho Velar, de Vitaras a Pajeros. Montadas pesadas para enfrentar os rigores do inverno e do trajeto, prontas para transportar mais de 100 soldados (e soldadas) pelas encostas e vales da Serra da Estrela.

Os limpa-neves

Anoitecer a nevar e acordar com um manto branco a cobrir a cidade mais alta de Portugal. Não é todos os dias que se abre a janela do quarto e se vê uma cidade recortada em branco. Também não é todos os dias que se pode fazer um passeio off-road na neve.

Felizmente vim fardado, gorro, luvas e casaco polar, mas melhor que tudo uma Mitsubishi Strakar edição comemorativa dos 20 anos. Se há carro bom para esta aventura gelada, é este. Numa era de modernos, eletrónicos e complexos SUV, a pureza mecânica e robustez da pick-up da Mitsubishi é um livre-trânsito para circular entre as linhas inimigas. Foi precisamente há 20 anos que surgiu a primeira Strakar, uma conjugação de Strada e Dakar sugerida pelo então piloto oficial da marca em Portugal, Carlos Sousa. O nome ficou e pegou e 20 anos depois a Strakar está em plena forma, sobretudo nesta bonita edição especial, com uns brutais pneus cardados, tração integral, redutoras e um motor Diesel de 181 Cv com força suficiente para não se assustar com subidas íngremes e não me deixar pendurado no meio da lama, espero eu.

Felizmente vim fardado, gorro, luvas e casaco polar, mas melhor que tudo uma Mitsubishi Strakar edição comemorativa dos 20 anos. Se há carro bom para esta aventura gelada, é este

A coluna militar sai em formação da cidade da Guarda, para poucos quilómetros depois sair do asfalto e entrar nas pistas coroadas de neve. Inicia-se então um longo slalom alpino, a paisagem é impressionante. Os vales cobertos de neve, com as cores da primavera a darem um belíssimo contraste de castanho e verde. Os trilhos vão ficando limpos de neve, mas cobertos de lama à medida que a coluna vai passando. Dou graças ao Altíssimo pelos pneus da Strakar que vão limpando tudo à frente. A capacidade de tração e a versatilidade do modo Super Select permite-me encontrar sempre o melhor compromisso e resposta para meter a potência no lamaçal, o conforto, esse é que é uma miragem, é cada solavanco que pareço um chocalho. Mas isto não é para valsas, é para cobóiadas.

Quem não era de valsas era o Rei D. Pedro, que mandou executar os assassinos de Dona Inês e não contente com isso, mandou salgar as terras de Jarmelo, alegadamente de onde era oriundo Pêro Coelho, um dos carrascos da dama galega, amante e depois esposa do monarca que derramou as derradeiras lágrimas na Quinta das Lágrimas em Coimbra, onde as estranhas algas vermelhas da fonte e do lago, são, reza a lenda, o sangue da rainha mandada assassinar pelo sogro.

Foi por esta pequena aldeia amaldiçoada por onde o corpo expedicionário do Raid do Bucho passou para visitar a estatuária que assinala a crueza de Pedro “o Cru” e também um antigo castro limítrofe e o castelo de Jarmelo, ou o que resta dele.

Mais uma dezena de quilómetros a galgar lama e neve, para a descida íngreme onde só os mais audazes se aventuram, já que o General Celínio aconselha rota alternativa e mais pacata aos carros menos preparados para este troço.

Com a Strakar não há que ter medos e a vertiginosa descida em slide da encosta da serra tem o merecido prémio no reencontro com alcatrão, onde se encontra a roulotte das farturas, que é já uma imagem de marca dos passeios do Escape Livre. Uma fartura e um café para enrobustecer as tropas na marcha de regresso à Guarda.

Na parte da tarde, o desafio era um circuito de TT com ares de percurso trialeiro, para meter à prova todos os sistemas de tração dos carros e o coração dos condutores e aventureiros. Novamente, para a Strakar calçada com “botas militares” aquilo foi quase um passeio no parque. Redutoras selecionadas, a segunda engrenada para não haver cá coices de potência e toca a subir os inclinados obstáculos, que no TT querer é poder.

Para a Strakar calçada com “botas militares” aquilo foi quase um passeio no parque. Redutoras selecionadas, a segunda engrenada para não haver cá coices de potência e toca a subir os inclinados obstáculos, que no TT, querer é poder

Ao jantar, oportunidade para tomar o primeiro contacto, ainda que só visual, com o famoso bucho que dá nome e pretexto a este passeio. Foi eleito o “melhor bucho raiano” por um júri especializado, com três critérios a ditarem a vitória: sabor, aspeto e aromas. O bucho primus inter pares foi o da Casa Pireza na Guarda. Eu, como já cheguei atrasado às eleições fiquei-me por uma feijoada de javali, e não me fiquei nada mal. Depois do retemperador jantar, regresso à Guarda para aquartelar antes da derradeira etapa de domingo.

Guerra e paz

Entre a Guarda e a Freineda, aldeia já bem perto da fronteira de Vilar Formoso, são pouco mais de 40 quilómetros, isto para quem vai pela autoestrada. Não é o nosso caso, preferimos ir por fora de estrada.

O manto de neve que cobria a Guarda e os trilhos desapareceu como que por magia. Já não há nem um floco à vista. O nevão de ontem parece ter sido uma ilusão ótica e o único vestígio que deixou foi lama por maus caminhos.

A coluna militar do Raid do Bucho seguiu sem percalços de maior pelas paisagens de uma beleza agreste e rude desta região da Beira Alta. Cabeços de granito, prados verdejantes, poucas mas belas árvores e muitos caminhos entre muros de pedra, a lembrar aquelas imagens do Rali do País de Gales ou da Irlanda.

Foi precisamente na Irlanda, em Dublin, que nasceu Arthur Wellesley, o Duque de Wellington, herói das Guerras Peninsulares que foi também primeiro-ministro britânico e deu nome ao bife Wellington.

Mas não é de bifes à inglesa que vimos falar, é do bucho. Aqui na Freineda é dia de festa, de festa do bucho. Para abrir o apetite nada como o cheiro a pólvora seca pela manhã. No largo principal da aldeia, as tropas aliadas e o povo enfrentam as cargas de artilharia do invasor francês. É uma rigorosa reconstituição histórica levada a cabo por uma série de grupos ligados à Associação Napoleónica Portuguesa. Fardas a preceito e escrupulosas, armas fidedignas e até movimentações coreografadas segundo os protocolos militares da época. “Não somos um grupo de teatralização, fazemos uma recriação histórica e preocupamo-nos com o rigor. Temos um vasto trabalho de investigação feito em arquivos militares e outras fontes que nos permite reconstituir com exatidão a atmosfera da época. Fazemos esta recriação todos os anos na Freineda, mas o evento maior é no último fim de semana de agosto em Almeida, onde juntamos mais de 500 pessoas a participar nas reconstituições”, explica o General que lidera esta associação.

Mas não é de bifes à inglesa que vimos falar, é do bucho. Aqui na Freineda é dia de festa, de festa do bucho. Para abrir o apetite nada como o cheiro a pólvora seca pela manhã

Ora, com a febre das feiras medievais, algumas bem intrujonas do ponto de vista histórico, aqui está uma ótima alternativa de animação histórica, sobretudo para toda esta deprimida e isolada região, que há dois séculos foi palco de um dos episódios mais sangrentos da História de Portugal.

Feita a guerra vamos à paz, numa imensa barraca de campanha armada para receber a Festa do Bucho, onde mais de 400 pessoas se debatem para chegar à primeira linha de fuzilamento da tal iguaria que move multidões.

Mas afinal o que é o bucho e o que tem ele de tão especial?

O bucho é a mais singular criação na vasta família de enchidos raianos. É uma bolsa feita da bexiga ou do palaio do porco que depois é enchida com pedaços menos nobres, mas nem por isso menos saboroso, da carne do porco – ossos moídos, cabeça, orelha e rabo – previamente temperados em vinha de alho. Depois, como qualquer enchido, é só atar e pôr ao fumeiro, esperando a hora certa para o envolver em linho e metê-lo na tradicional panela de ferro. Fica ali três horas a ganhar consistência e depois é servido em abundância de grelos, nabos e batatas.

O aspeto pode não ser o mais convidativo, mas o sabor, esse é de uma intensidade e carisma únicos. Nada como acabar uma guerra ou uma invasão TT da raia da Guarda com uma boa refeição.

E assim, se faz a paz, depois da aventura.