Fazer restauros de automóveis exige um profundo conhecimento técnico e das origens dos veículos se se quiser manter o seu estatuto o mais próximo possível do original. No caso do Polo Storico Lamborghini, divisão de modelos clássicos da marca italiana de desportivos, um dos desafios foi restaurar o bem exclusivo Miura SVR.

O Lamborghini Miura foi o carro que colocou Enzo Ferrari a coçar a cabeça e que elevou decisivamente a marca à categoria de mito na história do automóvel. Mostrado pela primeira vez no Salão de Genebra em março de 1966, foi o primeiro “Lambo” a adotar um nome próprio e redefiniu totalmente o conceito de carro desportivo na época, graças à sua configuração de motor central e de performance sem filtros. Quando foi lançado, o Miura era o carro de produção mais rápido do mundo, alcançando 280 km/h e acelerando dos 0 aos 100 km/h em 6,7 segundos. Mas essa foi apenas a base para o que viria a ser o Miura mais exclusivo do mundo.

Como tantas outras histórias envolvendo os Lamborghini, em especial os dos primeiros tempos da marca, esta deu muitas dores de cabeça a muita gente do Polo Storico, sobretudo porque o Miura que lhes chegou às mãos estava num amontoado de peças. Tratava-se de um Miura SVR, o mais exclusivo daquele modelo, porque é… exemplar único, de alta performance, feita à mão e repleta de modificações. Para completar o quebra-cabeças italiano, a base deste carro dos anos 1970 era de 1960 e não dispunha de qualquer manual técnico.

Foi com estes ingredientes que o departamento de clássicos da Lamborghini teve de conviver durante cerca de um ano e meio, o tempo que durou o processo de restauro deste modelo único. No total, produziram-se 763 unidades do Miura, mas apenas uma foi agraciada com a sigla SVR (Special Veloce Racing), uma evolução da versão de pista, denominada “Jota”, desenvolvida pelo piloto de testes da Lamborghini Bob Wallace.

Produzido entre 1966 e 1974, o Miura teve três “vidas” distintas com o mesmo coração, um 4.0 litros V12 montado transversalmente, herdado diretamente do 400 GT. A primeira série, fabricada até 1969, debitava 350 CV, a que se seguiu, até 1971, a versão S, com 370 CV. O último, e porventura mais famoso de todos os Miura, a versão SV, viu a potência subir até aos 385 CV e introduziu um sistema de lubrificação independente para a caixa de velocidades.

Exteriormente, os SV distinguem-se pelas molduras das óticas dianteiras e pelos guarda-lamas traseiros mais largos, uma modificação que além de tornar o conjunto mais agressivo permitiu acomodar os pneus de maior dimensão.

Mas, para alguns clientes, isso ainda não era suficiente. Depois de o Jota de Wallace se ter perdido num acidente, a enorme procura nos anos seguintes levou a Lamborghini a construir alguns Miura SVJ, que, não sendo tão extremos como o Jota de Wallace, apresentavam um motor trabalhado, carroçaria de alumínio e aerodinâmica aprimorada.

A ambição de Steber

E aquele único SVR? A verdade é que há sempre um cliente mais ambicioso. E a história é esta: o Miura com o número de chassis número 3781, motor número 2511 e o número de série 383 nasceu como uma versão S, pintada num “Verde Miura”, e com interior preto. Foi originalmente entregue à concessionária Lamborauto em Turim, Itália, em 30 de novembro de 1968, após a sua exibição no 50º Salão de Turim.

Depois de ter mudado de mãos oito vezes em Itália, foi comprado em 1974 pelo alemão Heinz Steber, o tal que tinha planos muito ambiciosos para o seu Miura. Pouco tempo depois de o ter adquirido, Steber levou-o de volta para Sant’Agata com o pedido de transformação num “SVR” – um trabalho que exigia 18 meses de empenho. A ideia é que este carro se aproximasse ainda mais do Jota do que os SVJ. Uma versão mais ligada à competição e ainda mais purista na condução, com potência bem acima dos 400 CV.

Mas a sua história não se esgotou aqui. Em 1976, o carro foi vendido a Hiromitsu Ito e viajou para o Japão, onde causou grande sensação, incluindo a inspiração para a série de banda desenhada Circuit Wolf. A lenda ficou ainda mais cimentada quando este modelo foi escolhido pela Kyosho como base para o seu famoso modelo à escala 1:18, que fez do SVR uma parte indelével da tradição das miniaturas.

Em 2018, nova viagem até Itália para um restauro que foi tudo menos simples, como explica Paolo Gabrielli, diretor do Polo Storico: “O restauro demorou 19 meses e exigiu uma abordagem diferente daquela com que normalmente trabalhamos. A folha de produção original não foi de grande ajuda, pois contamos principalmente com as especificações das modificações de 1974. O desafio para a equipa do Polo Storico foi ainda mais aterrador quando o carro chegou a Sant’Ágata em peças, embora estivessem todas, mas com modificações consideráveis. As únicas variações nas especificações originais foram a adição de cintos de segurança de 4 pontos, bacquets de competição e uma roll bar amovível. Estas foram expressamente solicitadas pelo cliente e destinaram-se a melhorar a segurança durante as voltas de demonstração em pista”.

Das origens à preservação

Modelos como o Miura têm sido alvo de trabalhos de restauro pelo Polo Storico, uma das iniciativas mais inéditas da história do construtor e que, de resto, tem marcado uma tendência que se estende agora a outras marcas de prestígio. Este departamento especializado foca-se em quatro áreas fundamentais: restauro, gestão arquivística, certificação e o fornecimento de peças originais através da rede de pós-venda e concessionários, uma forma de preservar o valor dos veículos.

A Lamborghini tem disponíveis mais de 70% das peças do parque de carros históricos da marca, podendo fabricar outras sempre que necessário. Mas, no caso do Miura SVJ, o trabalho foi mesmo de precisão e de grande cuidado na construção, esperando chegar a um resultado capaz de restituir o brilho àquele que ficará para a história da Lamborghini como o mais exclusivo exemplo de preparação desportiva.

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