Tudo indica que o panorama da mobilidade pode alterar-se mais profundamente nas próximas duas décadas do que as alterações que se registaram desde o início do século XX, altura em que surgiu o automóvel.

 

 

Na última década, têm surgido vários sinais, cada vez mais frequentes, de que estão em curso mudanças significativas na forma como as pessoas e bens se deslocam. Primeiro foram os veículos elétricos, que estão paulatinamente a conquistar quota de mercado, depois a digitalização de veículos e pessoas, que permitiram novas formas de partilha e de locomoção, e finalmente, a promessa dos veículos autónomos.

 

Estes modos de mobilidade alternativos, ainda sem uma expressão significativa em termos de quota de mercado absoluta, revelam taxas de crescimento suficientemente acentuadas para nos levar a considerar que estamos no limiar de uma autêntica revolução na mobilidade. Tudo indica que o panorama da mobilidade pode alterar-se mais profundamente nas próximas duas décadas do que as alterações que se registaram desde o início do século XX, altura em que surgiu o automóvel. Mas existem riscos associados e indefinição sobre qual será a “face” da nova mobilidade que resultar desta revolução.

 

Decisões políticas à escala global estão também a contribuir para estas alterações, como é o caso do Acordo de Paris. A descarbonização da mobilidade está na ordem do dia, tendo já várias cidades anunciado a proibição a prazo da circulação de veículos movidos a gasolina e diesel, e alguns países o fim da sua comercialização, tudo a ocorrer num futuro não muito distante, entre 2025 e 2040.

 

Muitas cidades estão a aproveitar esta dinâmica para reduzir a presença do automóvel nos centros urbanos, diminuindo o espaço dedicado à circulação e estacionamento de automóveis. As áreas libertadas podem ser utilizadas em exclusivo por serviços de transporte público, ou transformadas em espaços canais segregados para modos suaves de mobilidade, ou ainda devolvidas à fruição dos cidadãos como espaço público após requalificação.

 

Paris é a capital europeia a assumir a política mais agressiva nesta dinâmica, tendo sido cunhada a expressão “post-car” para qualificar a nova cidade resultante da referida dinâmica. Por altura da realização dos jogos olímpicos de Paris em 2024, é bem possível que os automóveis privados de combustão interna estejam já interditos de circular na cidade, sendo substituídos por shuttles elétricos autónomos.

 

Caminhando para o fim dos congestionamentos

Mas o que verdadeiramente está a transformar a forma como as pessoas e bens se deslocam é a crescente digitalização de pessoas, bens, veículos e infraestruturas. Se a digitalização de pessoas e veículos, através dos smartphones, permite modelos inovadores de partilha na mobilidade, capacitando a sociedade para uma maior colaboração, a digitalização de veículos e infraestruturas permitirá apenas num primeiro momento, o incremento da segurança rodoviária.

 

Num segundo momento, com uma alteração do atual paradigma da intervenção humana na condução, permitirá também um melhor e mais inteligente aproveitamento da capacidade das infraestruturas, contribuindo para a redução do congestionamento das cidades.

 

Por exemplo, daqui a uma ou duas décadas, se tivermos apenas carros conectados em circulação em infraestruturas digitalizadas, os sinais e regras de trânsito físicos deixarão de fazer sentido, os sentidos das pistas de rodagem poderão ser dinâmicos em função dos fluxos registados, e será possível o engate eletrónico entre veículos para permitir reduzir a distância entre eles e incrementar fluxos de trânsito.

 

A ocupação das infraestruturas rodoviárias poderá até ser gerida através da atribuição de slots em tempo real, à semelhança do que sucede no espaço aéreo, tornando o congestionamento um problema do passado.

 

Esta realidade será a expressão da Internet das Coisas na mobilidade, suportada por novas tecnologias como o 5G. Se por cima do plano da conectividade adicionarmos o plano da Inteligência Artificial, teremos o estabelecimento de padrões de mobilidade não só no espaço e no tempo, mas noutras dimensões sociais, económicas e culturais, que levarão ao desenvolvimento de serviços inovadores, que por sua vez suportarão novas formas de organização e coordenação no seio da mobilidade, com a agregação de vários modos de transporte, que por sua vez atuarão de forma colaborativa. O conceito Mobility as a Service atingirá então todo o seu potencial.

 

O passo seguinte será a mobilidade preditiva, resultado da comunicação entre o ecossistema digitalizado da mobilidade e o ecossistema digitalizado da informação acerca das demais dimensões da vivência pessoal: o modo de deslocação será programado antecipadamente a partir das agendas pessoais ou das redes sociais.

 

Deixaremos de procurar soluções de mobilidade para cada situação específica, serão as soluções que antecipadamente virão até nós. Aquilo que assistimos hoje em dia com a digitalização da informação e os motores de busca, assistiremos no futuro com a digitalização da mobilidade e as plataformas avançadas de Mobility as a Service.

 

Da euforia à moderação

Com novas soluções de mobilidade, novos serviços partilhados, novos veículos, maior colaboração, mais conectividade, a gama de opções para ir de A para B será mais alargada, convenientemente gerida por plataformas de Mobility as a Service, e a mobilidade será caracterizada pela dispersão de alternativas. Mas através da aplicação deste conceito de produção em massa customizada, cada cidadão terá acesso ao modo de deslocação mais conveniente para si.

 

A inteligência artificial está igualmente a suportar o desenvolvimento da condução autónoma. Apesar das promessas ambiciosas efetuadas nos últimos anos pela indústria, 2018 parece ter sido o ano do choque de realidade para a perceção do estado de desenvolvimento da tecnologia, após a generalidade dos stakeholders terem moderado o discurso eufórico dos anos anteriores que relatava a iminência dos veículos autónomos nas estradas.

 

Para esta moderação, muito contribuiu o acidente mortal ocorrido em março deste ano, em Temple, EUA, com um veículo autónomo da UBER, que expôs as limitações ainda existentes. Entretanto, a via incremental do desenvolvimento da tecnologia autónoma vai sendo trilhada pela generalidade dos construtores de automóvel, que vão disponibilizando cada vez mais funções autónomas, para determinadas condições de condução, nos seus novos modelos topo de gama.

 

Carros ou computadores sobre rodas?

No futuro, veículos autónomos e conectados serão verdadeiros computadores sobre rodas, com elevada capacidade para processar o grande volume de informação gerada. As transformações serão muitas, algumas radicais, outras imprevisíveis. Por exemplo, a capacidade de processamento dos veículos poderá eventualmente ser aproveitada quando os veículos não se encontram em circulação.

 

Imagine um parque de estacionamento no futuro. Será mesmo um parque de estacionamento, ou um data center? A capacidade de processamento disponível no parque de estacionamento poderá ser explorada por uma empresa que oferece serviços de computação em Cloud (como a Amazon Web Services). Será o veículo a pagar pelo estacionamento, ou o parque de estacionamento a pagar pela utilização da capacidade de processamento?

 

A plena digitalização da mobilidade aguarda que a geração millennial atinja o topo da estrutura etária da sociedade, aguarda a integral substituição dos veículos atuais por veículos conectados, aguarda a integral digitalização das infraestruturas e aguarda o desenvolvimento de protocolos de comunicação universais. Entretanto, os ciclos de vida de veículos e de infraestrutura não são compatíveis com os ciclos de vida das tecnologias de computação e comunicação, e esta dissonância será sempre um travão à transformação.

 

Mas tal não é necessariamente negativo, porque assim existirá o tempo necessário para a sociedade, e em última análise, os decisores políticos, desenvolver e implementar uma visão para a mobilidade no futuro. Sem uma visão, teremos uma evolução desestruturada, apenas assente na dinâmica de mercado, sem concretizar todo o potencial existente na colaboração entre todos os atores. Está assim reservado um papel fundamental aos Estados neste processo.

 

 

Luís de Almeida Amaral | Mobilidade e Transportes, técnico superior no Metropolitano de Lisboa.

 

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