Já há algumas cidades portuguesas a construírem territórios seguros, inclusivos e com melhor qualidade de ambiente. Mas, avisa a especialista em mobilidade, a prática dominante ainda é implementar projetos avulsos sem uma estratégia a montante.
Paula Teles trabalha desde os anos 90 com autarquias, entidades públicas e privadas na área da mobilidade. Um percurso sólido que lhe permite traçar a evolução do planeamento urbano e mostrar como a pirâmide da mobilidade se inverteu nas últimas décadas. A prioridade agora é o peão, o ciclista, o transporte público e, no fim da cadeia, o automóvel. Mas, o “péssimo hábito” português de implementar medidas avulsas, atira areia numa engrenagem que tem como desafio construir cidades inclusivas, integradas e em que a mobilidade serve sobretudo para transportar pessoas para lugares de encontros não apenas dos mais jovens mas também dos menos jovens.
Como evoluiu o planeamento da mobilidade nas cidades portuguesas?
A questão tem duas vertentes. A primeira, relacionada com os paradigmas que, em 30 anos, sofreram muitas evoluções. Nos anos 90, o foco esteve nas grandes infraestruturas (rodoviárias, ferroviárias, aéreas, etc.), em torno da engenharia de tráfego e dos transportes. Mais tarde, foram as diferentes camadas – dos transportes públicos, da circulação rodoviária, do estacionamento, das ciclovias ou dos modos pedonais – a serem estudadas com poucas preocupações de conectividade. A terceira geração trabalha os hiperlinks, ou seja, a multimodalidade, em que se exige a devolução da cidade às pessoas. O desenho urbano promove os nós, as interfaces, os espaços urbanos que sustentam cadeias de deslocação com vários modos de transporte, em particular nos movimentos casa- -trabalho e casa-escola. Este trabalho é realizado em Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS). Nos países mais preocupados com a sustentabilidade urbana, este é o estádio atual. Somos o único país da Europa do Sul que não tem a obrigatoriedade de elaborar esse instrumento de planeamento. E é urgente alterar esse péssimo hábito português de implementar medidas avulsas, sem uma estratégia a montante. A segunda vertente tem que ver com a intensidade de planear a mobilidade desde os anos 90. A elaboração dos planos é residual em Portugal. Contudo, os municípios que o têm feito, têm construído territórios mais amigos, seguros, inclusivos e com alguma qualidade de ambiente urbano.
Sendo o planeamento projetado a longo prazo, de que forma coexiste nos ciclos políticos?
Esse é um dos problemas. O exercício de planear tem sido posto em causa face aos reduzidos ciclos políticos, em particular os autárquicos. O limite de mandatos dos autarcas, ao passar para 12 anos, trouxe um maior stress na implementação das políticas municipais. Somos confrontados com uma vontade imensa de implementar projetos, a toda a velocidade, mas, muitas vezes, desfasados de uma estratégia ou integrados num plano diretor de mobilidade. E insiste-se com esta estratégia. A única forma de contrariar isso é a obrigatoriedade de se elaborar, ao nível das autarquias, os PMUS com possibilidade de revisão, como se faz na restante União Europeia.
Em 26 anos de profissão, nunca duvidei de que o principal modo a privilegiar é o peão! A cidade democrática é aquela que permite o direito à cidade! Esse direito só é possível se tivermos uma primeira preocupação com a plataforma do peão, o chão da cidade. Passeios seguros, com maior dimensão, ausentes de barreiras urbanísticas e arquitetónicas e acessíveis às pessoas com mobilidade reduzida. Esses percursos devem estar integrados na estrutura verde, hoje tão relevante face às oscilações das ilhas de calor nos centros das cidades. Assim, a pirâmide da mobilidade inverteu-se nesta última década. Agora, a prioridade é o peão, o ciclista, o transporte público e, no fim da cadeia, o veículo privado – sem desprezar a estratégia que a cidade terá de encontrar para a circulação, mesmo que condicionada, dos residentes que ainda vivem nos centros das cidades. Sob pena de continuarmos a assistir a cidades-donuts pela sua centrifugação face à pressão turística.
Somos confrontados todos os dias com uma vontade imensa de implementar projetos, a toda a velocidade, mas, muitas vezes, desfasados de uma estratégia.
Ciclistas e peões a partilhar o mesmo espaço não é conflituante?
A mobilidade já está presente nos discursos políticos, mas até que ponto tal se reflete na mudança de mentalidades?
Também aí sou muito crítica. Um dos pontos do planeamento nos PMUS é exatamente na área comportamental. Essa ação é colocada por nós desde o início do processo de elaboração do PMUS. Justamente para informar e formar a população para os novos desafios, para as medidas que serão acionadas e para as mudanças de atitude que cabem aos cidadãos. Temos algumas boas práticas, como ações de sensibilização e formação para as crianças e os jovens. Uma medida importante neste momento, com fortes financiamentos para a implementação das ciclovias, é ensinar as crianças a andar de bicicleta, as regras de segurança rodoviária, como devem percorrer a cidade a pé ou de bicicleta. Vários estudos nos nossos municípios mostraram elevadas taxas de crianças que não sabem e mesmo nunca andaram de bicicleta. Sem este trabalho educacional, todo o investimento nas ciclovias não terá resultado.
O direito à cidade só é possível se tivermos uma primeira preocupação com a plataforma do peão, o chão.
Quais os benefícios de uma mobilidade bem planeada?
Esta ideia de requalificar as cidades, costurando e construindo os corredores verdes fracionados pelo edificado de elevada densidade, implementando áreas desportivas de proximidade, articuladas por redes pedonais e cicláveis entre equipamentos e serviços, estimula a prática desportiva e hábitos de andar a pé e de bicicleta. A cidade não é só componente física, mas também social. Os lugares são pesquisas em busca de pessoas, de amigos, de família, de afetos. A cidade, polis, é o expoente máximo de democracia, palco de diferentes culturas, políticas e religiões. E se não tiver essa alma cosmopolita, algo de humanização, será apenas uma infraestrutura. A mobilidade é o canal que irriga e transporta as pessoas para lugares de encontro, não apenas dos mais jovens, mas também dos menos jovens. Uma cidade com mais mobilidade é também inclusiva, e aqui o direito à cidade, em particular para as pessoas de mobilidade reduzida, é essencial. Temos de desenhar a nossa cidade como se fosse a nossa casa, cuidar das praças como a nossa sala de estar, as ruas como corredores, dando- -lhes mais luz, mais árvores, mais mobiliário urbano à escala humana. Este conceito beneficiará a saúde pública e será uma das soluções para a descarbonização e humanização das cidades, na escala global.
Assume-se como “realizadora de projetos integrados”, o que envolve e significa isso?
Envolve enorme paixão por esta área. Num país com muita negligência no trabalho de planear e com uma dificuldade tremenda no trabalho de equipa, a que adiciono a dificuldade do conhecimento multidisciplinar, obrigatório no meu tipo de abordagem diária, não torna a minha tarefa fácil, acredite. Mas insisto nessa metodologia. Por isso, a dificuldade permanente na gestão do meu dia-a-dia, também por ser, reconheço, uma técnica pouco tradicional. Uma engenheira que quer continuar a ser engenheira, é certo, que voltaria a ser, mas com a necessidade de integrar na sua abordagem o gosto pelo urbanismo, pelo território e pela arquitetura. Nunca ignorando a sociologia urbana, a geografia, arquitetura paisagista e o design na tentativa de atingir o belo, a qualidade do ambiente urbano e a sua relação com a felicidade do ser humano. A mobilidade e o seu planeamento apenas é o veículo que transporta esta missão.
Kátia Catulo (texto) | Pedro Granadeiro/Global Imagens (foto)
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