Clássicos na Magnólia, a arte de bem receber na Madeira

18/08/2021

No fim de semana de 31 a 1 Agosto, o nosso repórter Joel Araújo fez uma viagem muito especial à ilha da Madeira, inicialmente apenas para cobrir um evento de clássicos, mas acabando por viver uma experiência que vai muito além dos automóveis.

“Acabaste de ganhar
uma viagem à Madeira”.

Jorge Gabriel, és tu?

Não. Era mesmo o Salvador Patrício Gouveia, diretor do Jornal dos Clássicos, que me liga numa segunda-feira no final do treino com uma proposição de fazer acelerar o ritmo cardíaco, ainda mais do que tinha depois dos 1000 metros de corrida, 100 metros de walking lunge e outras parafernálias da modalidade de Crossfit (daquelas que dão pesadelos à noite).

Ai é? (Pausa ofegante para respirar) Quando?
“Próximo fim-de-semana. 31 de Julho a 1 de Agosto. Podes?”

(Segunda pausa ofegante para respirar) Devia ver o meu calendário, mas claro que posso.

O Jornal dos Clássicos, nomeadamente o Salvador e o Adelino Dinis, foram convidados pelo secretário regional do Turismo e Cultura do Governo da Madeira, Eduardo Jesus, a voarem até à bela ilha Atlântica, para cobrir a segunda edição do Clássicos na Magnólia. Felizmente para mim, nenhum deles estava disponível nesta data, herdando eu a tremenda responsabilidade em ser, pontualmente, o terceiro nome escolhido nesta linha de embaixadores pesos-pesados da cultura do automóvel clássico em Portugal.

O Clássicos na Magnólia é uma exposição de automóveis e motos clássicas ao ar livre com entrada gratuita, onde se celebra, acima de tudo, a relação muito próxima entre os madeirenses e o seu rico espólio de veículos históricos. Este ano, a música principal celebra os sobreviventes do Rally de Volta à Madeira de 1959. Mas o concerto é longo e, ali mesmo ao lado, está alguém a trautear Chuck Berry ao deslumbrar dos seis dos sete Jaguar E-Type residentes na Madeira. O automóvel “mais bonito do mundo” celebra este ano o seu sexagésimo aniversário, e está aqui bem representado. No interlúdio, dançamos ao swing de Maurice Chevalier enquanto contamos as cores da exibição de Vespa italiana, ícone de design com 75 anos de idade. Há ainda espaço para um encore, ao som de Motown e The Cars, comemorando alguns dos automóveis norte-americanos e europeus ao serviço do governo regional da Madeira durante o séc. XX.

A curadoria do evento esteve a cargo do conhecido escultor Martim Velosa, um dos muitos ilustres participantes no evento, com quem tive o prazer de me cruzar e partilhar várias reflexões.

Os meus amigos mais próximos sabem que cada vez que começo uma história com “Uma vez fui à Madeira”, as reacções serão sempre de choque, descrença, estupefação, perplexidade e geralmente muito riso à mistura. A tradição mantém-se, mas é a primeira vez que tal acontece devido a um voo. Foram necessárias duas tentativas de aterragem para que os 174 passageiros do Airbus A320 conseguissem bater palmas. Um snob também teme pela sua vida, mas não bateu palmas.

À porta do Aeroporto, esperava por mim o automóvel de aluguer, gentilmente cedido pelo Turismo regional. Eu achava que conduzir nas ruas do Porto era claustrofóbico, mas as vias rápidas e acessos da ilha estão numa liga à parte. Não sou fã de condução noturna, ainda assim, não me lembro de uma viagem tão bonita à noite, com as luzes do Funchal como pano de fundo. Mesmo com todo o cansaço acumulado da viagem, fazer esta marginal sozinho, de janela aberta, a uns confortáveis 24 graus, foi o primeiro dos vários momentos de catarse que tive durante todo o fim de semana.

O meu primeiro dia de Clássicos na Magnólia começou relativamente cedo. O tiro de partida oficial para o início do evento seria dado pelas 11h da manhã, pelo secretário do Turismo e Cultura, Eduardo Jesus, apaixonado dos clássicos. Contudo, fui mais cedo para apanhar ainda alguns preparativos, conhecer os membros da organização e fazer o reconhecimento do espaço, antes da multidão invadir o recinto. “A Madeira é um jardim”, e a Quinta Magnólia, com 32.000 metros quadrados, vista para o mar, plantas e árvores provenientes de todo o mundo é um excelente exemplo disso. Equipada com campos de ténis, squash, padel e circuito de manutenção, parque infantil, um bar e uma casa-mãe, um antigo British Country Club, que atualmente alberga exposições temporárias, este é o cenário perfeito para este evento.

A primeira ordem do dia foi a atribuição dos certificados de participação aos cerca de 30 automóveis expostos, nas várias categorias presentes. Eduardo Jesus, excelente mestre de cerimónias, concedeu a todos os proprietários um generoso certificado assinado à mão. Entre eles exemplares historicamente distintos como o Norte-Americano Hudson Super Six de 1928 que serviu na praça de táxi no Funchal, oferecido pelo proprietário à Região Autónoma da Madeira. O Inglês MGB de 1965 com historial de ralis na Madeira e Açores, pertencente a António Martins, atual presidente do Clube de Automóveis Clássicos da Madeira. O Amilcar CGSE, carro de competição francês de 1926, propriedade de Martim Velosa, o curador do evento. O Triumph TR4 recentemente restaurado na ilha, propriedade de Eduardo Jesus, automóvel célebre por, em 1965, ter dado a primeira vitória do Rally – Volta à Madeira a um madeirense, Zeca Cunha. Contamos ainda com os mais exóticos Sovam Coupe Sport 1100A de 1967 e o BMW Isetta 300 “Bubble head” de 1957, todos eles heróis improváveis do RVM. No final da cerimónia, tive oportunidade de entrevistar informalmente Eduardo Jesus, numa agradável conversa onde partilhou comigo a história e relação da Madeira com os automóveis clássicos. Segundo me explicou, esta relação remonta a 1904, quando pela primeira vez circulou um veículo motorizado na ilha, um Wolseley de 10 cavalos, trazido por um estrangeiro que foi à ilha passar férias. Mais tarde em 1907, com a vinda dos primeiros autocarros de transporte de passageiros, essa relação fortaleceu-se com a população em geral. Com a formação do CACM (Clube de Automóveis Clássicos da Madeira) em 1987, deu-se um grande impulso à difusão desta cultura, levando muitos proprietários, pelo simples gosto, ligação emocional ou familiar, a adquiriram e a restaurarem os seus clássicos. Isto causou à organizado de exposições, ralis e mais recentemente o assinalável Madeira Classic Revival, juntando anualmente centenas de bólides provenientes de todos os cantos da ilha. Poderá ler com mais detalhe a entrevista com Eduardo Jesus na íntegra num futuro artigo do Jornal dos Clássicos.

Por esta altura o sol atingia o seu zénite, e todas as atividades no jardim faziam uma pausa para almoço. O local escolhido para receber este peregrino claramente “overdressed” para a ocasião foi o Chalet Vicente. Uma casa ao estilo Inglês com quase um século de existência, transformada num restaurante com um belíssimo jardim exterior. O atendimento foi imediato e a simpatia notável. Como é hábito quando visito um restaurante pela primeira vez, deixo-me levar pelas sugestões da casa, e acabei por aceitar todas as sugestões que me fizeram. “Algo para abrir o apetite?” Um Bombay se faz favor. “Bolo do caco e azeitonas para entrada?” Claro que sim. “Vinho?” Faça-me uma sugestão, mas tem que ser branco. “Sobremesa?” Claro! O meu único requisito nesta negociação era provar o afamado bife de atum. Ainda assim, como quem nunca aceita o preço de tabela, a simpática da empregada de mesa sugeriu-me a espetada de atum com molho à vilhão sobre tiras de milho frito. Eu não consegui dizer que não. E o arrependimento foi nulo.

Voltaria à Quinta Magnólia ao início da tarde, mesmo a tempo de apanhar a “carreira”, a bordo do autocarro Chevrolet LQ 1/1 Ton, chegado à madeira em 1929 originalmente como um camião, tendo o seu chassis sido reaproveitado para a conversão num autocarro, com aplicação de uma nova carroceria ao serviço da “Empresa de Automóveis do Caniço Lda.” Este veículo faria o transporte pendular entre o Palácio de São Lourenço, na Avenida do Mar, o Lido (Sun City) e a Quinta Magnólia. Para além de efetivamente transportar pedestres curiosos de forma gratuita, era também um excelente meio de publicidade ao evento. Foi muito bom poder cruzar olhares com os passageiros e trocar impressões, pois eles tinham sempre algo a partilhar, alguma sugestão a dar sobre um local a visitar, ou apenas factos aleatórios sobre a história da ilha.

O facto de estar vestido para a ocasião, fez não só despertar a curiosidade dos visitantes e facilitar a interação, mas também ajudar-me a imergir na atmosfera tão específica de um evento de clássicos. Óbvio que ir de sapatilhas, calções desportivos e boné é mais confortável que aguentar 28 graus ao sol vestido como o Tommy Shelby dos Peaky Blinders. Mas todos os pequenos detalhes contam para construir uma atmosfera adequada, e este é um que tenho todo o gosto em contribuir, ainda que os meus pés me odeiem por isso.

Uma vez entregues à Quinta Magnólia, os civis deram lugar ao fantástico grupo de figurantes do evento. Não descurando uma boa conversa com os locais, mas subitamente senti-me bem melhor acompanhado pelas lindíssimas representantes das décadas de 20 a 60. Com o outfit aprumado, penteados e acessórios à época e até algumas homenagens a figuras icónicas como Marilyn Monroe. A minha conta de instagram foi popular por várias “stories” durante o fim-de-semana, mas sem dúvida que esta viagem de autocarro foi a que obteve mais reacções. Não me pude queixar. Estas figurantes fizeram um trabalho magnífico durante todo o evento, posando elegantemente em conjunto com os automóveis expostos, figurando em piqueniques de época, e realizando vários “flash-mobs” durante o dia, dançando ao ritmo do Jazz, Blues e Rock n’ Roll. Um detalhe delicioso, tão simples e ao mesmo tempo tão inteligente que coloriu os Clássicos na Magnólia. É apenas mais uma instância que comprova o que tenho vindo a defender: “O que faz um encontro de clássicos não são os automóveis. São a forma como as pessoas, a estética, os cheiros, a luz e o som interagem com esses mesmos automóveis”. A Quinta Magnólia leva nota máxima neste aspecto, mesmo sendo um espaço físico relativamente pequeno, e com uma amostra pequena do respeitável espólio de clássicos madeirenses. Durante as festividades, seriam polvilhados vários momentos lúdicos, incluindo performances da Saxofonista Silvia Freitas, assim como um concerto de Jazz no coreto do jardim. Todos estes momentos, alinhados com a música ambiente do sistema de som, compostos maioritariamente por bossa nova e jazz, criaram a atmosfera ideal para uma tarde bem passada.

A grande circulação de visitantes, sempre respeitando as normas de segurança e distanciamento social, garantiu que nunca me faltasse ninguém para trocar umas palavras. A primeira conversa foi com António Martins, atual presidente do CACM (Clube Automóvel Clássico da Madeira). Grande entusiasta de automóveis, levou-me até junto do seu MG B ali exposto, abrindo a mala e partilhando comigo efusivamente registos e álbuns fotográficos do restauro completo levado a cabo no Reino Unido, elaborando todas as viagens e aventuras envolvidas no longo processo. Mostrou-me também alguns jornais dos anos 60, onde se pode comprovar o historial de competição em ralis nas ilhas. O António deu-me uma perspectiva muito interessante sobre a razão de existirem tão bons restauros e artesãos ligados aos clássicos na Ilha. Interessante e bastante óbvia: “A necessidade aguça o engenho”. Com a elevada dificuldade de obter peças de substituição, ou os valores proibitivos de transportar um veículo para o continente para ser restaurado, várias casas de restauro nasceram e especializaram-se organicamente, vindo a tornar-se referências internacionais. Além disso, como o acesso a importações era limitado, os automóveis em circulação eram mantidos excepecionalmente bem por períodos mais longos que o normal.

A conversa seguinte foi com Martim Velosa, reconhecido escultor e curador da exposição Clássicos na Magnólia, e proprietário do Amilcar, um dos pré-guerra de competição mais interessantes no relvado. Adjacente ao mesmo, o Jaguar E-Type de Ricardo Velosa, seu pai, provando que é uma paixão que já vem nos genes. O Martim partilhou comigo alguma da história do Rally – Volta à Madeira, hoje conhecido como Rali Vinho da Madeira, mantendo a sigla “RVM”. Algumas das dificuldades que os pilotos internacionais encontravam nas estradas madeirenses, e como isso ajudou alguns locais a ganharem especiais em viaturas bem menos potentes e, se calhar, não tão bem preparadas.

O último grande encontro do dia seria com Marco Ireneu Pestana, reconhecido Alfista, certificador de clássicos pelo Museu do Caramulo na ilha da Madeira, pioneiro do podcast “Máquinas do tempo”, e claro, colega redator para o Jornal dos Clássicos. Apesar de imensos amigos em comum, foi a primeira vez que nos conhecemos pessoalmente, tendo proporcionado um excelente final de tarde à mesa, acompanhados por umas Coral, a cerveja oficial da ilha, tudo em nome da autenticidade da experiência.

O restante dia de Sábado e posteriormente Domingo resumir-se-iam assim. Puramente a absorver a atmosfera, a trocar palavras com os participantes e proprietários, a observar os jogos de ténis e paddle a acontecer ali mesmo ao lado, e a começar a perceber que esta festa é melhor que a soma de todas as suas partes. O pôr do sol espreitava por entre as árvores, projetando longas sombras sobre os automóveis, acabando com um reflexo dourado no mar, contrastando os tons verdes e coloridos da flora do jardim. Era hora de terminar o dia. Um ponto positivo de fazer reportagens sozinho, é que posso abrandar o ritmo e planear o meu tempo sem preocupações de terceiros. E foi isso que fiz quando voltei ao hotel. O fim-de-tarde estava quente, solarengo, e tinha uma piscina inteira com água à temperatura ideal só para mim. Não nadei. Virei-me para o céu, abanei as pernas o mínimo possível mas o suficiente para me manter a flutuar, e assim fiquei durante 30 minutos. Assim, meramente a demolhar o corpo e as ideias para este texto.

Tenho vindo a contar-vos alguns dos vários detalhes que enaltecem este evento, e há um que me recuso a omitir. Refiro-me à qualidade do cartaz. Não falo do programa, que já sabemos ser excelente, mas sim da qualidade gráfica dos suportes digitais e em papel. A imagem deste ano contou com uma ilustração lindíssima, a cargo do Adamastor Studio, com um MG A a circular na marginal montanhosa tão reconhecível da Madeira. O cartaz foi posteriormente montado pelo OurStudio, estúdio madeirense de Design. Considero este um cartaz ao nível dos cartazes do Estoril Classics, ilustrados pelo dinamarquês Mads Berg. Na minha opinião, dos melhores cartazes de eventos automóveis que vi em tempos recentes em Portugal. É uma pena que a qualidade da comunicação dos nossos eventos esteja tão desinvestida, principalmente se nos lembrarmos do delicioso design gráfico do rali de Portugal usado nos anos 60, 70 e 80.

Há uma reflexão importante que quero tirar da minha estadia na Madeira: Vamos só admitir que um evento de clássicos é muito mais que os automóveis expostos. A secretaria do Turismo e Cultura da Madeira foi muito inteligente em posicionar este evento, não como um mero encontro de nicho, porque os clássicos são um nicho, mas sim como um evento turístico e motivo de visita à ilha. Todo o detalhe na hospitalidade, na organização, na decoração visual e sonora do espaço foram simplesmente geniais. Quem nunca sonhou ir a Pebble Beach Concours d’elegance. Ao Monaco Grand Prix, a Mille Miglia Storica, a Goodwood Revival, a Vila D’Este, a Le Mans Classic? A concepção deste sonho não requer uma receita assim tão complicada. Tudo se resume a uma relação próxima com bons embaixadores de media, repórteres e fotógrafos de topo, que ano após ano de comunicação consistente, personalizada, com boa fotografia, boa hospitalidade e boas histórias, elevam qualquer evento merecedor a um estatuto de sonho. E é isso que estou a fazer neste preciso momento com o Clássicos na Magnólia.

Espere lá, então e a poncha? Está o leitor a questionar-se desde o início do texto. Felizmente terei outra oportunidade de vos relatar a minha experiência com este famoso aperitivo Madeirense, pois o Clássicos na Magnólia regressa para a sua terceira edição nos dias 30 e 31 de Julho de 2022.

Quero dar um agradecimento especial ao Paulo Camacho por toda a ajuda durante o evento, sugestões e entrevistas. À Marta Henriques, Maria José Gonçalves e Joana Simões por toda a simpatia e logística eficiente, ao Eduardo Jesus pela excelente entrevista e organização do evento. Ao Martim Velosa, António Martins e Marco Ireneu Pestana pela amizade e boas conversas.