Fiat-Abarth 131 Stradale, um Escorpião em Santa Luzia

06/04/2021

O cenário grita finura urbana na medida certa, num misto de arcaico e moderno que apenas um centro de cidade sabe representar em plena graça. Tal possibilita o breve desfase entre enquadrado e desenquadrado do 131 consoante a via percorrida, um desfase não encontrado no constante voltar de cabeças à passagem de um escorpião de sapato Campagnolo. A minha fraqueza tendenciosa, evidente, a franqueza do meu sorriso, idem, nem que esbatida pelo pedido de ausência de registos fotográficos.

Ao sentir a envolvência dos brilhantes assentos (com um padrão tão 70s), é impossível não fecharmos os olhos e encarnarmos Markku Alén, de tão fácil percepção que o proprietário aconselha “cautela, não vá ela morder”. Sim, é uma ela, como poderia não ser? Porém, quiçá pelo receio da obtenção de uma conclusão desvirtuada, surge o incentivo: “Calca-lhe que ela aguenta!”. Que ansia de tais palavras e que reacção com uma saída bem calculada em sobreviragem.

Tempo houve em que o 131 Abarth era automóvel para heróis. Escrevia-se que representava um “ estranho misto de inteligência, bravura e sofisticação”, unanimidade entre a imprensa especializada internacional. Estávamos em 1977, mas o sentimento de enquadramento mantém-se.

O conhecimento do contexto histórico do modelo parece dar ainda mais relevo à experiência. O substituto eleito para o 124 Abarth Sport era o X1/9. Desenvolvido pela Abarth, por essa altura já plena subsidiária da Fiat, a variante protótipo de competição faria a sua estreia no Giro di Sicilia em Março de 1974, falhando a sua conclusão por um problema na caixa de velocidades. Provas posteriores acabariam por provar a capacidade do conceito.

A Bertone, subcontractada, foi então encarregada de produzir as versões de estrada para cumprir os mínimos de homologação, restando à Fiat a assinatura sobre a linha designada. Ao invés, o projecto seria totalmente abandonado. A gerência de Turim voltava-se para um automóvel de três volumes como próxima arma para atacar o Mundial de Ralis.

Em termos netos, o resultado seria a demissão do gestor para a competição, Gino Macaluso, e instruções para embarcar num novo projecto.

Na realidade, a Abarth vinha a preparar uma versão de competição do 131 sob a clássica designação SE031, integrando um bloco V6 de 3.5 litros, o que nos faz ponderar se os Executivos da firma italiana não terão vislumbrado o clássico slogan “Win on Sunday, sell on Monday”, menos palpável num automóvel de cariz mais desportivo.

O 131 para homologação não teria tanta potência como seria espectável, muito em parte pelo facto da Fiat frisar a necessidade da versão apimentada pela Abarth ser largamente relacionável com as variantes do 131 produzidas em massa.

Tal traduzir-se-ia na aplicação de um motor de quatro cilindros de longo curso e injecção, lubrificação a cárter seco e dupla árvore de cames acoplada a um bloco de ferro fundido com uma cabeça de 16 válvulas em alumínio.

Várias opções foram ponderadas para o design das suspensões, acabando por prevalecer um sistema MacPherson de treliças independentes para a traseira e um sistema similar (robustecido) ao das versões regulares para a dianteira.

Fisicamente, a carroçaria poderia ser semelhante à das versões mais vulgares com a adição de alguns apetrechos aerodinâmicos, mas apenas a estrutura interna seria transversalizável. Os painéis frontais, a asa traseira, o capot e a mala seriam fabricados a partir de fibra de vidro, sendo as portas obtidas a partir de alumínio. Uma rollcage e reforços tubulares em aço na dianteira providenciavam uma rigidez adicional bem-vinda.

Ainda em forma de protótipo, o 131 Abarth venceria pela primeira vez no Rally delle Valli Piacentine em Dezembro de 1975, com Fulvio Bacchelli e Bruno Scabini.

Com a homologação concluída em Abril de 1976, o 131 Abarth de Grupo 4 obteria uma primeira vitória oficial no Rali de Elba em Itália, com Markku Alén a colher as honras. Maurizio Verini seria vitorioso no ECR Tulip Rally e no Rally di San Giacomo.

Pelo final do ano, Alén venceria o Rali dos 1000 Lagos (repetindo o sucesso em 1979 e 1980), sendo que, na época seguinte, a participação parcial daria aso à luta pelo título do Mundial de Ralis.

Os 131 de fábrica disputariam todas as provas de mundial com excepção do rali Safari, com Alén a ter como companhia os finlandeses Timo Mäkinen, Simo Lampinen e Timo Salonen, e os especialistas em asfalto Jean-Claude Andruet, Bernard Darniche, Fulcio Baccheli e Walter Röhrl: uma equipa de luxo.

O resultado? Vitórias alcançadas em cinco das dez rondas disputadas pela equipa, resultando no título de Constructores por uns escassos quatros pontos de superioridade em relação à Ford. Em 1978, a história repetir-se-ia, com o alcance de cinco vitórias e um novo título mundial de Constructores.

Em 1979, o primeiro ano do Mundial de Pilotos, a Fiat optou por reduzir a participação da equipa de fábrica em prol da prestação de assistência a equipa privadas, comummente no Europeu de Ralis (seis pilotos venceriam outro tanto número de provas). Para além disso e a somar aos êxitos dos Fiat com insígnias Seat no país vizinho, o fabricante espanhol homologaria a sua própria variante de competição alcançando exacerbado relevo interno contrastado com moderada saliência internacional.

No ano seguinte, a equipa de fábrica retornaria à proeminência selando um terceiro título mundial de fabricantes, com Röhrl a conquistar o primeiro dos seus dois títulos mundiais.

Em 1981 a participação seria reduzida, consumada pela vitória de Alén em Portugal. Terminava o ciclo do 131 Abarth no Mundial de Ralis com 18 vitórias em seis temporadas e com eternas memórias das decorações da Alitalia, OlioFiat e o azul, vermelho e branco da Fiat France.

Quanto à variante Stradale, não diferia tanto da versão de competição quanto seria desejado pelo fabricante de Turim, muito possivelmente pelo enfase que a Abarth teve sobre o projecto. As caixas de velocidades disponibilizadas eram assíncronas, apesar de existir a possibilidade de equipar o conceito antitético. Relativamente à quantidade fabricada, o valor dependerá da estimativa que se credibilize. Os requerimentos de homologação referiam uma produção mínima de 400 unidades, apesar de haver quem argumente que a quantidade total, em variante de competição e Stradale, seja de 608 veículos. Onde quer que vejamos a verdade, o 131 Abarth é extremamente raro. Na sua forma mais básica, o valor de venda rondaria algo como 60.000 euros actuais.

O bloco Lampredi de dupla árvore anunciava 240cv de potência em especificação de competição, com uns “meros” 140cv às 6400 rotações na versão de estrada, tudo com um único carburador Weber 34ADF.

7,2 segundos no sprint aos 100 e 190 quilómetros por hora de velocidade de ponta, com uns impressionantes 3,3 segundos dos 60 aos 100 km/h em terceira velocidade, valores estupendos para a época.

Tal miríade de contemplação acaba interrompida pela percepção da tarde ofegante de Agosto que parecia tornar a visão que se me justapunha numa miragem.

O vermelho Rosso Arancio contrastava com a mescla de verdes providenciada pelos eucaliptos e pinheiros que ladeiam o percurso da Rampa de Santa Luzia e a principal estrada florestal de ligação até ao Parque Eólico de Carreço-Outeiro, palco de algumas das imagens mais memoráveis do Rally de Portugal até há alguns anos. O contraste até poderia ter ocorrido de uma forma mais focada, não fossem a familiaridade com o percurso e o entusiasmo com a máquina a pesar no pé direito.

Quer sob a sombra do Santuário do Monte de Santa Luzia, quer sob a penumbra intermitente providenciada pelas gigantescas pás rotativas, o olhar pende para o 131, sendo que quanto mais tal ocorre, mais este aparenta ter sido perspectivado com um lápis rombo e um esquadro, com um aileron abrupto com downforce em mente: um design Bertone de cariz intemporal. Numa fase inicial, os 131 base eram inclusive enviados até à fábrica de Rivalta para o assembly final na sua variante Abarth.

As cavas alargadas, por forma a cobrir a borracha Pirelli 195/50 R15, o aileron dianteiro com semelhanças a um limpa-neves e o quarteto de faróis Cibié vigorizam a dianteira. O duplo aileron traseiro e as aberturas no capot e cavas traseiras anunciam o propósito.

O habitáculo, entretanto, é maioritariamente transversal ao 131 Mirafiori (estranhamente, não foi incorporado um mostrador dedicado à pressão do óleo): uma sincronia de plástico e nylon.

Um volante de dois braços com um estilo puramente desportivo mostra serviço, serviço este complementado pelas cabeças de parafuso expostas e pelo clássico logótipo do escorpião na zona central. Os pedais perfurados indiciam também que estamos perante algo mais que um mero meio de transporte, assim como os assentos, fabulosos com as listas laranjas, apesar de não tornarem a condução particularmente confortável, uma antecipada conclusão errónea por base no seu aspecto.

O ralenti é relativamente turbulento, com um comportamento truculento em baixa rotação, entre soluços até às médias. Porém, com rédea solta e espaço suficiente, acelera de forma brilhante com uma banda sonora apropriada. Não possui um tom particularmente memorável, algo de relevo superior antes das 6000 rotações por minuto, mas a partir deste ponto atinge o nível sonoro esperado de um Abarth.

As barras estabilizadoras aparentam estar no seu ponto mais solto, com o 131 a ceder livremente em curva sem, contudo, que tal afecte os níveis de aderência, sempre cientes através de um direcção firme e comunicativa. O diferencial autoblocante ZF requer um nível considerável de provocação para que a traseira se solte em asfalto, mas em superfícies soltas, a conversa é outra.

Os travões apresentam um comportamento tudo ou nada, mas em mãos dotadas de maior habituação, revelam toda a sua eficiência.

Com a herança, o emblema e o visual que se lhe associa, não podemos falar numa performance avassaladora. Porém, o 131 permanece um desafio para condução suave, exigente e recompensador.

No final de um dia perfeitamente memorável, numa paisagem que parece enquadrar o 131 Abarth na sua magnitude, surge a súbita percepção de que a Fiat nunca deu o devido seguimento aos seus êxitos. Assim que a carreira desportiva do 131 terminou, o foco do grupo de Turim retornou plenamente para a Lancia (ainda que com contributos magnânimos da Abarth).

Os regressos esporádicos ao longo dos anos fazem-nos agarrar a um passado já distante, ainda que não sejam algo particularmente sério, sem derradeiros especiais de homologação ou carros halo e sem nunca disputar categorias rainhas, mas antes secundárias.

Em período, o Fiat-Abarth 131 Rally fez com que crianças de todas as idades ficassem com fraqueza nos joelhos. Sinceramente, os anos não fizeram nada para mudar isso.