Le Train Bleu e a aposta dos “Bentley Boys”

03/07/2019

A meio da tarde do dia 14 Março de 1930, um Bentley Speed Six chega a Londres. Este partira de Cannes há menos de 24 horas, atravessando a França em ritmo de competição com um único objectivo: vencer um comboio numa corrida improvisada que viria a constituir um dos mais curiosos e interessantes episódios da história da Bentley. Contudo, o automóvel que protagonizou a façanha acabaria relegado à obscuridade ao longo de quase 70 anos enquanto outro Bentley desfrutava dos louros de uma vitória com a qual não possuía qualquer relação.

O peculiar desafio fora lançado pelo mais influente dos “Bentley Boys”: Joel Woolf Barnato. Os Bentley Boys eram um grupo de condutores abastados com uma paixão fervorosa pela competição automóvel e apreço especial pelos modelos da Bentley. Barnato constituíra-se como herdeiro de uma vastíssima fortuna associada à mina de diamantes Kimberly na África do Sul. Como muitos dos Bentley Boys, Barnato não era apenas playboy e bon vivant mas também um piloto capaz e talentoso. Além do mais, a devoção de Joel Barnato à Bentley significou um período de glória para a companhia. Quando as dificuldades financeiras se tornaram demasiado pesadas para W.O. Bentley suportar, Barnato injectou capital, pagou dívidas a credores e passou a desempenhar funções como Presidente da Bentley, cargo que ocuparia entre 1926 e 1931. Foi durante a presidência de Joel Barnato que a companhia desenvolveu o lendário Bentley Blower, tendo assegurado igualmente três vitórias consecutivas nas 24 Horas de Le Mans em 1928, 1929 e 1930. Barnato fez parte da equipa nas três ocasiões e, até à actualidade, é um de apenas sete pilotos com três vitórias consecutivas na prova, honra que partilha com outras personalidades de relevo como Henri Pescarolo e Emanuele Pirro.

A 12 de Março de 1930, durante um jantar em Cannes no qual Barnato se encontrava presente, a conversa entre os convidados passou por recordes de velocidade e pelo facto de tanto modelos Rover como Alvis terem sido capazes de viajar de Cannes a Calais mais depressa que o famoso Le Train Bleu (O Comboio Azul). Oficialmente designado como Calais-Méditerranée Express e activo entre 1922 e 1938, O Comboio Azul operava entre Calais e a Riviera Francesa, transportando passageiros abastados com rapidez e extremo conforto; as luxuosas carruagens azuis conferiam o nome ao comboio.

Barnato, competitivo e aventureiro, argumenta que chegar a Calais antes do comboio não era um feito particularmente impressionante e que, ao volante do seu Bentley, não teria problemas em partir de Cannes, percorrer as centenas de quilómetros até ao Norte de França, embarcar num navio para atravessar o canal, chegar a Londres e desfrutar do conforto do seu clube de eleição antes do comboio sequer alcançar Calais. Barnato confiava tão plenamente nas capacidades do Bentley e na sua própria habilidade como condutor que decide estruturar uma aposta: 200 libras em como seria capaz de realizar o feito que descrevera. Contudo, os companheiros de jantar de Barnato não eram de modo algum alheios à reputação do homem da Bentley e, como tal, ninguém aceita apostar contra o milionário. Desapontado pela falta de desafiantes, Barnato decide interpretar a situação como uma oportunidade de se testar a si próprio, realizando a corrida de qual forma.
No dia seguinte, pelas 17:45 h, O Comboio Azul parte da gare de Cannes. A menos de dois quilómetros de distância, Barnato e Dale Bourn terminavam as respectivas bebidas no bar do hotel Carlton antes de saírem em perseguição do comboio. Bourn, um golfista amigo de Barnato aceitara ser o copiloto do aventureiro na longa viagem até Londres. O automóvel que seria utilizado pela dupla era um Speed Six equipado com o mesmo motor de seis cilindros em linha (6.5L, 180 cavalos) que garantira à Bentley a vitória em Le Mans em 1929 e que a viria a garantir novamente em Junho de 1930.

Apesar da confiança de Barnato e da competência do Speed Six, transformar o desafio da noite anterior em realidade não foi uma tarefa fácil. Ao longo do percurso entre Cannes o Lyon, o qual exigiu várias horas, o Bentley foi fustigado por chuvas fortes que obrigaram a um abrandar significativo do andamento do automóvel. Recorde-se que, à época, o Speed Six estava limitado a estradas rurais, muitas ainda em terra batida e fraco estado de conservação, o qual era consideravelmente agravado pelas condições climatéricas adversas.

Pelas 4h30 da madrugada, perto de Auxerre e ainda a quase 200 km de Paris, a dupla perde-se enquanto procurava um local (pré-determinado) de reabastecimento, desperdiçando desse modo tempo valioso. Ultrapassada a dificuldade, Barnato e Bourn enfrentaram nevoeiro cerrado até à capital sendo obrigados, uma vez mais, a limitar o ritmo do Speed Six. Pouco depois de atravessarem Paris surge novo problema: um furo obrigou à utilização do único pneu sobresselente do Bentley. Se o infortúnio voltasse a acontecer, a corrida com O Combio Azul estaria irremediavelmente perdida.

Contudo, graças a uma melhoria das condições climatéricas e ausência de quaisquer outras questões técnicas, Barnato e Bourn chegaram a Bologne-sur-Mer pelas 10:30 h da manhã do dia 14 depois de percorrerem aproximadamente 1000 km. Apesar das limitações ao andamento, a dupla assegurou uma média de cerca de 70 km/h ao longo do extenso percurso, um feito bastante impressionante em 1930 e dadas as condições experienciadas. No entanto, a corrida não estava ganha. A dupla precisava de embarcar o Bentley num navio, atravessar o canal para Inglaterra e conduzir de Dover a Londres, um percurso de sensivelmente 130 quilómetros. O objectivo continuava a ser chegar ao clube de Woolf Barnato – o designado “Conservative Club” em St. James Street antes do Comboio Azul alcançar Calais.

Depois da travessia e do desembarque, uma corrida desenfreada para a meta colocou Barnato e Bourne à porta do Conservative Club às 15:20 h. Quatro minutos depois da dupla entrar no estabelecimento, O Comboio Azul chegava a Calais. Barnato ganhara a aposta que fizera consigo próprio e, no mais afirmado testemunho das capacidades e fiabilidade do Speed Six, o furo que o automóvel sofrera ainda em França foi o único problema mecânico a registar ao longo de toda a viagem. Embora não tenha tido acompanhamento pela imprensa, o feito de Barnato e Bourne foi amplamente divulgado, levando a que a própria Bentley fosse multada em 160 libras por “corrida em estradas públicas” por parte da Associação Francesa de Fabricantes de Automóveis e impedida de participar no Salão de Paris de 1930. Barnato argumentou que realizara o percurso como cidadão privado e não como Presidente da Bentley, mas os responsáveis pelas sanções escolheram não atender à distinção. Será relevante lembrar que neste período, a rivalidade entre Bentley e Bugatti era acesa e, além do mais, há três anos que a Bentley dominava Le Mans (1927, 1928 e 1929), pelo que uma certa medida de nacionalismo poderá ter de alguma forma fomentado uma resposta mais severa por parte da França às aventuras do automóvel inglês, mas este é um ponto meramente especulativo.

Sem dúvida o aspecto mais fascinante do feito de Barnato é que, durante décadas, o crédito da vitória sobre O Comboio Azul foi simplesmente atribuído ao Bentley errado. O que aparenta, em essência, ser um facto bastante fácil de verificar acabou por ser remetido à obscuridade desde 1930 até 1999. Como foi referido, por se ter tratado de um impulso espontâneo por parte de Barnato, a imprensa não registou qualquer informação durante o acontecimento, obtendo depois apenas relatos em segunda mão da viagem. Os únicos com informação concreta na primeira pessoa seriam, naturalmente, o próprio Barnato e Bourne, mas estes aparentam não ter revelado muito sobre a rápida travessia da França, talvez de modo a evitarem mais sanções para a Bentley. Apenas uma entrevista em 1946 por parte do ex-Presidente da Bentley à British Racing Drivers Club Review parece ter prestado informação concreta acerca desta temática; Barnato referiu nessa ocasião que o Bentley que conduzira ao longo dos dias 13 e 14 de Março de 1930 era o seu Speed Six “Saloon” (sedan, quatro portas).

Esta indicação foi contra a crença estabelecida que o Bentley conduzido por Barnato naquela ocasião teria sido o seu icónico Speed Six Sportsman Coupe – apelidado pelo proprietário de “Blue Train Special” – um automóvel de duas portas com carroçaria em estilo fastback produzida pela J. Gurney Nutting & Co. O detalhe revelado na entrevista passou maioritariamente despercebido ou foi simplesmente ignorado como equívoco. A reputação do Blue Train Special como o Bentley que havia vencido O Comboio Azul viria a ser cimentada em 1994 pelo popular quadro de Terrence Cuneo intitulado “Bentley vs The Blue Train”. Nessa obra, a qual se tornou extremamente popular, com várias reproduções da mesma a serem vendidas frequentemente nos leilões de automobilia, o feito de Barnato é romantizado ao extremo com o piloto (sozinho) ao volante do Blue Train Special, em velocidade numa estrada de terra batida paralela à linha férrea por onde viaja, naquele preciso momento, O Comboio Azul. Naturalmente compreende-se a licença artística, mas o facto de Cuneo ter inadvertidamente retratado o automóvel errado só contribuiu para que o verdadeiro herói da façanha permanecesse na obscuridade.

A situação viria contudo a mudar em 1999. Graças a pesquisas realizadas pela Dra. Clare Hay, especialista em Bentleys e autora de vários livros acerca dos modelos da construtora britânica, determinou-se que o Blue Train Special (chassis HM2855, motor HM2863) só foi concluído dois meses depois da vitória de Barnato sobre O Comboio Azul, ou seja, o designado Blue Train Special não fora utilizado na corrida de Cannes a Londres, mas sim encomendado e subsequentemente baptizado em celebração da mesma. Isto significava que o verdadeiro herói do curioso episódio passara completamente despercebido ao longo de quase sete décadas. Com que automóvel único teria então Barnato assinado tão interessante nota na história da Bentley? Outro coupé especialmente fabricado para o Presidente da companhia? Talvez um modelo de competição preparado pela fábrica? Não, a realidade foi muito mais banal. Pesquisa adicional acerca do Blue Train Special revelou que o automóvel conduzido por Woolf Barnato entre 12 e 14 de Março de 1930 terá sido, muito simplesmente, o seu Speed Six Saloon (como este referira na entrevista de 1946), uma espécie de “carro da empresa” entregue pela Bentley a Barnato para seu uso pessoal em Junho de 1929. Um automóvel preto, extremamente discreto e com uma carroçaria Mulliner da maior simplicidade, o Speed Six chassis BA2592 – motor BA2594 ao serviço do Presidente da Bentley não dispunha de qualquer particularidade que o diferenciasse de outros exemplos do mesmo modelo, não tinha sido preparado de modo especial para viagens longas nem a mecânica era mais resistente que a de outros Speed Six; era simplesmente um automóvel de qualidade, algo que a Bentley sabia bem como produzir.

Curiosamente, Barnato aparenta não se ter apegado ao BA2592, valorizando mais o Blue Train Special do que o automóvel que realmente triunfara sobre O Comboio Azul. Talvez seja relevante procurar entender a perspectiva de Barnato para com os dois automóveis, afinal tinham a mesma motorização, a mesma base e o Speed Six com carroçaria Gurney Nutting é de facto um automóvel mais atraente e mais marcante que o Saloon da Mulliner. Enquanto o Blue Train Special reflectia com maior clareza o estilo de vida de um Bentley Boy como Barnato, com um exterior estilizado para impressionar e um interior de três lugares especialmente concebido em redor dos essenciais armários em nogueira para bebidas, o Saloon de Barnato era simplesmente um automóvel funcional; imponente sem dúvida, mas sem o factor de deslumbre do Blue Train Special. O Presidente da Bentley acabaria por vender o BA2592 sem cerimónia em Maio de 1930, provavelmente logo após tomar posse do extraordinário Nutting Sportsman Coupe.

Unidos por uma história comum, os Speed Six Mulliner e Nutting de Barnato encontram-se hoje em dia, igualmente no seio da mesma colecção. Bruce e Jolene McCaw, um casal de colecionadores do estado de Washington, U.S.A eram já proprietários do Blue Train Special quando ficou decididamente provado que não tinha sido aquele automóvel o utilizado na corrida de Cannes a Londres. Ao invés de procurarem manter o facto maioritariamente desconhecido de modo a tentar inflacionar o valor do Nutting Coupe, os McCaw trabalharam activamente para que a verdade dos factos fosse conhecida. Além do mais, os coleccionadores procuraram e adquiriram o verdadeiro triunfante sobre O Comboio Azul de modo a poderem acolher os dois automóveis e valorizar a história partilhado por ambos. No entanto a reunião não foi fácil. Após ter sido vendido por Joel Barnato em 1930, o Speed Six Mulliner BA2592 viu a sua carroçaria original substituída por uma de estilo Le Mans Touring. Reportadamente, os McCaw necessitaram de adquirir dois Speed Six diferentes de modo a conseguirem reunir todos os elementos originais do BA2592 de Barnato. Seguiu-se um restauro completo do automóvel, o qual foi apresentado em conjunto com o Blue Train Special no Concurso de Elegância de Pebble Beach em 2003.

Em 2005, os McCaw enviaram ambos os Speed Six para a Europa de modo a recriar o percurso de Barnato e Bourne, partindo exactamente de onde a dupla partira – o hotel Carlton em Cannes. Os Speed Six foram acompanhados ao longo da viagem por dois Bentley Blower e vários outros automóveis históricos da companhia. Ao contrário do ritmo de corrida tomado originalmente por Barnato e Bourne, o evento de 2005 poupou os Bentleys clássicos a esforços desnecessários, de modo a ter em conta a preservação daqueles automóveis.

Em 2015, por ocasião do octogésimo quinto aniversário da corrida com O Comboio Azul, a publicação Car Magazine realizou igualmente uma recriação da mesma, mas desta vez com um Continental GT3-R. Recorde-se que o GT3-R constitui um dos mais desejáveis modelos da segunda geração dos Continental GT; inspirado no Continental GT3 de competição e equipado com um motor V8 de 572 cavalos, mesmo tirando partido de todas as vantagens da modernidade do automóvel e de uma rede viária vastamente mais desenvolvida que a disponível em 1930, o GT3-R acabou por estabelecer uma velocidade média apenas ligeiramente acima da alcançada pelo Speed Six Mulliner de Barnato…

Apesar de actualmente já ser bem conhecido o equívoco na atribuição dos louros da corrida que – inadvertidamente – o tornou famoso, o Blue Train Special da Nutting continua a ser uma estrela de especial brilho para os entusiastas da Bentley. Em 2015, o automóvel deslumbrou no Goodwood Festival of Speed, assim como na Retromobile e Techno Classica. Este ano, com o centenário da Bentley mesmo ao virar da esquina, certamente que o Blue Train Special fará várias aparições, continuando a desfrutar de uma aclamação pública que nenhuma revelação conseguiria possivelmente mitigar.

Pedro Fernandes / Jornal dos Clássicos