O motor que durou exatamente 24 horas em Le Mans

05/11/2018

O ano: 1983. O veículo: o Porsche 956 #3 da Rothmans Porsche. E a equipa: Vern Schuppan, Al Holbert, e Hurley Haywood. Até aqui nada de especial: uma equipa consagrada, um automóvel com mais do que provas dadas, num circuito que nos faz sonhar de olhos bem abertos e no mágico período dos protótipos de Grupo C. Mas eis que em 1983, nas aclamadas 24 Horas de Le Mans, o fantástico se converteu em mítico.

O Porsche 956 foi fruto da evolução do modelo anterior utilizado pela marca do cavalinho rampante (não essa, a Alemã) em provas de resistência, o bem-sucedido 936. Com um chassi monocoque em alumínio com cerca de 800 quilogramas (o mínimo para o Grupo C), o 956 utilizava um bloco de 2,65 litros flat sixturbocharged, similar ao utilizado pelo seu antecessor, debitando cerca de 635 cavalos. Ao aditarmos a isto a primeira utilização de uma caixa de velocidades de dupla embraiagem, o uso de um sistema de injecção Bosch Motronic de extrema eficiência, mas também a sua admirável capacidade de produção de downforce, quase o triplo (!) do conseguido pelo lendário Porsche 917 uma década antes, percebemos o sucesso do 956.

Pelos testes concretizados e pelas provas anteriores, já se sabia que estava aqui uma obra de arte, ou não fosse este até muito recentemente o detentor da volta mais rápida em Nordschleife, com seis minutos, onze segundos, e 13 centésimos de segundo, recorde este apenas batido pelo Porsche 919 Evo (e bem batido), e só ao fim de mais de 30 anos.

O Momento

Ao pensar nas 24 Horas de Le Mans, o que não falta são vislumbres do fantástico, momentos de suster a respiração, e, até mesmo, eventos que alteraram a história do desporto motorizado.
Para uma amostra do grau de exigência exigido, basta recordar a 85ª edição das 24 horas de Le Mans, tendo apenas dois automóveis da categoria rainha (LMP1) terminado a prova, quase sendo dispensável recordar o imbróglio do ano passado com o Toyota TS050 #5, que ao liderar a corrida a quatro minutos do fim, teve problemas de motor e ficou parado em plena recta da meta. Curiosamente quase encontramos equivalência no primeiro caso e no posteriormente relatado.

Último Suspiro

Em 1983, o Porsche #3 liderava a prova de princípio ao fim, quando, na última volta das 24 horas, começa subitamente a abrandar por problemas de sobreaquecimento (danos no motor provocados por bloqueios ao fluxo de ar para o radiador, causando falhas no arrefecimento da cabeça do motor flat six).

Nisto, o Porsche 956 #1 de Bell (que fazia equipa com o afamado Jacky Ickx), à altura com uma volta de atraso, reentra na volta do líder, e começa rapidamente a encurtar terreno. Como que um maratonista com a meta em vista, o #3 continuou, lentamente, a caminhar em direcção à bandeira de xadrez, naquela que seria, tal o ritmo, já a última volta da prova (certamente não terão faltado dentro do cockpit típicas expressões de injuria para com o monstro de Estugarda). Eis que, com apenas 17 segundos de vantagem, Schuppan, depois de terminar em 3º dois anos antes, e em 2º no ano anterior, cruza a linha de meta, vencendo as 24 Horas de Le Mans de 1983.

Mal o faz, é possível verificar intenso fumo azul a sair da traseira do Porsche: o motor do #3 cessou, passou a besta a bestial, e com o último girar de cambota, venceu as 24 horas de Le Mans.

Motor Whispering
Falar em “motor whispering”, talvez seja menos disparatado do que mencionar sorte… Porque por um segundo em 24 horas, poderíamos estar a falar de um desaire ainda maior do que o de há dois anos. Mas se bem se pode dizer, e aclamando o perfil romântico do desporto motorizado, o motor do Porsche 956 aguentou até onde sentiu, até onde lhe foi capaz, e até onde o tal “motor whispering” o incumbiu.

Se perguntarmos a Valentino Rossi, por exemplo, a dúvida dissimula-se em certeza plena, ou não nos recordemos do típico ritual que antecede qualquer prova do nove vezes campeão do mundo de motociclismo: na mecânica, há intriga, algo inexplicável e “demasiado belo para não ter alma”.

Se os automóveis têm alma ou não, resta saber, mas por “obra e graça do divino espírito santo” ou não, a obra do funcionamento de um qualquer motor, o rugido de um V12, e a beleza de umas quaisquer linhas que nos prendem o olhar ao serem esculpidas na mais pura chapa, não podem ser nutridas meramente de pura lógica, cunho e ribombar.

José Brito

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