Uma paixão por automóveis com motor refrigerado a ar

30/11/2019

O Jornal dos Clássicos partilha a segunda história enviada por um leitor que aceitou o desafio por nós lançado. Falamos de uma paixão por automóveis com motor refrigerado a ar, partilhada por Carlos Pinto, e que transcrevemos em baixo.

Terei que recuar bastante tempo, quando tinha seis anos, para conseguir contextualizar o gosto que desenvolvi por estes automóveis.

O fim-de-semana era sempre um período excitante. Ao Domingo, ia com o meu avô à missa, que era bem perto de casa. Pese embora, já nessa altura ser católico me entusiasmasse, em boa verdade, era ir ter com o meu avô e o que se seguia, que me fazia desejar que todos os dias fossem Domingo.

Ele ainda vinha a subir a rua, com o padre dentro do carro e já reconhecia o barulho do motor. Era inconfundível, aquele ruído arejado, metálico e germânico. Aquele, não era o primeiro carro com aquelas formas que me lembro ver o meu avô a conduzir, mas aquele era especial, tinha mais letras brilhantes atrás, era mais ruidoso, mais veloz.

Adorava, depois da missa, levar o padre a casa, sentado na parte do Volkswagen Carocha 1303 S, ouvindo bem de perto o motor que estava logo atrás de mim, emanando calor e uma pitada de odor a gasolina. Mas que bela ideia colocar o motor na bagagem. O meu avô conseguia surpreender os meus amigos, alegando ter perdido o motor. Eu, como mais conhecedor que todos, apenas me ria.

Infelizmente o meu avô envelheceu, tal como o carro, sendo que a paciência de um para com o outro foi diminuindo. O primeiro, num gesto brusco de intolerância, decidiu terminar, num dia de chuva intensa, a relação de longa data com estes carros refrigerados a ar. Trocou-o por um carro francês, despojado de ruídos metálicos e daquela forma que fazia rodar cabeças. Desejava ficar com ele, mas ainda estava a muitos anos de ter a carta. Mais, mal tínhamos espaço para o carro lá de casa, o belo Brasilia do meu pai, outra obra de arte da Volkswagen.

Aquele bichinho sempre se manteve dentro de mim, com picos de vontade de adquirir um, de cada vez que ouvia o motor refrigerado a ar. Veio o ensino secundário e a faculdade, com suas dificuldades. O tema foi ficando esquecido, até que, como que de uma fénix se tratasse, o desejo recrudesceu após ter descoberto um Volkswagen 1303 Karmann de 1979 em Faro, a um preço razoável. Estava já a trabalhar, pelo que comecei a poupar um pouco cada mês. Pedi a ajuda do meu pai, que tinha amigos em Faro, para investigarem o estado do carro – “Bom, dizem eles”. Um dia, depois de conseguir a totalidade do dinheiro, proponho uma viagem de comboio até Faro ao meu pai. Mal ele sabia que, se tudo corresse bem, a viagem de volta seria num carro vintage.

O carro foi importado da Alemanha por um inglês que agora mora no Algarve. Não tinha o motor de origem, mas tinha uma cor muito original, verde alface, que se estendia até as jantes. A capota era verde inglês. Os estofos pretos. Tinha uma série de manómetros extra e o rádio demasiado moderno. Mas pouco interessava. Já estava tudo orientado para a compra e os bilhetes de comboio adquiridos para dia 23 de Março de 2010.

Quando o vi pessoalmente, o carro era ainda maior do que tinha pensado. Com uma base mais larga do que o do meu avô. A caixa era curta, difícil de manusear, mas fazia parte do estilo. Tinha pouco combustível, pelo que o teste foi curto mas assertivo. A compra concretizou-se e depois de uns formalismos legais, partimos para almoçar com o colega do meu pai que nos foi buscar ao comboio. Aqui, expliquei ao meu pai o plano, fazer 600 km na nova aquisição. O meu pai aceitou com facilidade, pois estava tão excitado quanto eu. Mas o destino tinha outros planos, já na auto-estrada, com o meu pai ao volante, numa ponte, o carro começa a deitar muito fumo. Algo não estava bem. Parámos, pedimos socorro ao ACP, não sem antes a GNR aparecer para nos autuar – não tínhamos triângulo ou coletes.

O Carocha lá seguiu outro caminho, só de reboque chegaria ao Porto. Para nós, o destino tinha decidido que seguiríamos de carro francês, mais moderno que o do meu avô, mas tão insosso.

O diagnóstico foi o pior. O motor tinha colado por falta de óleo. Só precisava de óleo e gasolina, enchemos do segundo, não confirmamos o primeiro. Tinha de ser desmontado. Este, viria a atingir a sua glória máxima apenas dois anos depois. Primeiro após reconstrução do motor e depois de um facelift que lhe deu uma nova vida.

Hoje faz parte das minhas melhores memórias. Casamentos, reuniões, festas. Faz parte da família. Desde então já tem um irmão mais velho, de 1957.

Se tem uma história com um automóvel que teve, no qual viveu uma aventura, que restaurou ou com o qual simplesmente criou uma relação, ainda que à distância, queremos conhecê-la e partilhá-la com todos os leitores do Jornal dos Clássicos. Saiba como fazê-lo aqui.