Wiesmann, o trato do automóvel pelo nome próprio

21/07/2019

Dois irmãos apaixonados por automóveis reunidos numa qualquer garagem trabalham artesanalmente para dar forma ao conceito de um automóvel excepcional: assim poderia começar o conto de algumas das marcas mais memoráveis da história automobilística. O que poderá surpreender é que esta história remonta apenas há cerca de 30 anos e que essa marca tenha conseguido criar espaço entre os fabricantes de automóveis mais exclusivos.

A Wiesmann foi fundada por Martin, um engenheiro de profissão, e Friedhelm, licenciado em economia, que, aquando da sua visita ao Salão Automóvel de Essen de 1985, não encontraram nos automóveis expostos a paixão e exuberância dos tempos antigos que tanto procuravam.

Foi a partir deste momento que a ideia de um automóvel desportivo com tecnologia de ponta e look retrocomeçou a tomar forma. Mais do que criar um automóvel elegante para passeios de fim-de-semana, pretendiam gerar um superdesportivo com performance capaz e chassis de comportamento excepcional, sendo deste objectivo que surgiu o logótipo da marca, a salamandra, pois a aderência que esta tinha às paredes era a que os desportivos Wiesmann deveriam ter ao asfalto.
No mesmo ano em que surge a ideia, surge também o primeiro protótipo, sob a forma do Wiesmann GT Roadster, iniciando-se também conversações com a BMW com objectivo de negociar o fornecimento de motores para equipar a jovem marca. Sendo o financiamento uma premente preocupação para Martin e Friedhelm, acabam por conseguir incluir no acordo com os bávaros o fabrico de tectos para os cabrio da marca, nomeadamente o Z1.

Três anos volvidos, e os Irmãos Wiesmann voltam a marcar presença no Salão Automóvel de Essen, mas desta vez como expositores, apresentando o primeiro automóvel da marca.

Gama

O fabrico de tectos para o BMW Z1, mas também pedidos adicionais da Porsche e da Ferrari, permitem à Wiesmann o desenvolvimento contínuo do projecto, que culminaria com a entrada em produção do MF28 em 1993, equipado com um motor BMW de 2,8 litros, e o MF30, equipado com um motor de três litros.

Em 2002 ocorre nova alteração no modelo, que passaria a ser equipado com o motor do BMW M3 E46, desenvolvendo 343 cavalos às 7900 rotações por minuto e incorporando uma nova linha de escape detentora de uma sonoridade brilhante, adoptando-se a designação de MF3.

Como clausura do modelo, a Wiesmann produziria ainda uma final edition limitada a 18 unidades, sendo que actualmente este se encontra como obsoleto.

Posteriormente seriam lançados outros modelos, sempre assentes num visual a invocar décadas passadas e a permitir uma pronta identificação de que estamos perante um dos modelos da casa de Dulmen. Tornaram-se disponíveis os roadsters MF4 e MF5 e os seus homólogos Coupé GT MF4 e GT MF5, surgindo o primeiro equipado com um motor de 4,4 litros de 407 cavalos de potência ou com um V8 de 420 cavalos (MF4-S). Já o GT MF5 possui um motor biturbo de 4.4 litros com 555 cavalos de potência.

Mais recentemente foi lançado o deslumbrante GT MF4-CS, uma versão especial com foco em pista que surge equipada com um motor V8 de quatro litros, travões de maiores dimensões, kit aerodinâmico, cores especiais, backets, roll cage, e um peso ainda mais reduzido, o que evidencia que a participação da Wiesmann em campeonatos de GT não é meramente um acto publicitário. Desta versão apenas seriam fabricados 25 exemplares, os últimos da marca germânica.

Individualidade

Os pequenos fabricantes também têm vantagens, e muitas. A nossa experiência com a Wiesmann não começava num inóspito configurador online, longe disso. Se assim o desejássemos, era possível a deslocação até à fábrica para escolher, com os componentes em mão, quais as cores e materiais que iriam compor o nosso Wiesmann em algo único. Era possível escolher a cor da carroçaria a partir de um vasto leque de opções, assim como era possível ver essa cor aplicada a um painel da mesma. Era também possível ver a tapeçaria, tocar-lhe, cheirar a pele se assim se desejasse, tudo graças ao trato quase familiar de um tal pequeno fabricante. Cada modelo podia ser produzido cedendo ao mais ínfimo capricho do cliente, desde cores, tecidos, bordados, e muitos outros detalhes que fazem de cada Wiesmann um objecto único.

Apesar da estética aludir claramente aos roadster britânicos da metade do século passado, a engenharia (e consequente fiabilidade) são puramente alemãs, sendo que talvez adviesse deste factor o sucesso que a marca tinha vindo a alcançar.

Com um crescimento lento, apresentava-se cada vez mais como uma opção ao Porsche 911 no período da crise dos 50 (ou dos 40, que por terras germânicas entram em jogo fundos distintos), mas tal complexidade e exclusividade tinham um preço, preço esse que rondava os 124.000€ por um MF4 Roadster numa versão mais acessível, com um emprego de cerca de 400 horas de trabalho manual.

Junto à Linha

Carroçaria em fibra de vidro, motor e transmissão: os únicos componentes que provinham do exterior da fábrica, sobrevindo tudo o resto do árduo trabalho artesanal no qual não intervinha robótica em algum momento, apenas cerca de 100 operários. Todos estes factores contribuíam para a tranquilidade que se respirava em Dulmen, uma pequena cidade no oeste da Alemanha, próxima de Dusseldorf. Nela, uma salamandra de dimensões estrondosas albergava no seu interior uma fábrica de automóveis: o coração da Wiesmann. Com uma estrutura limitada por gigantescos vidros, a admissão a visitas era frequente, sendo que além da exposição de diversos modelos da marca, era ainda possível assistir em primeira mão à montagem em linha.

Não era uma questão de fundos, de prazos, de agonias, mas antes de princípio: o de fazer luxuosos e potentes coupés e descapotáveis motorizados por alguns dos motores mais fascinantes da BMW. Tudo isto acaba por resultar num certo romanticismo de ter um automóvel único, nem sempre plenamente agradável, mais que não fosse pelo período de espera de seis meses. Logicamente que nem todo este tempo era dedicado à fabricação de um modelo, uma vez que existia uma lista de espera, com limitação a um fabrico de 210 automóveis ao ano, sendo que, para termos de comparação, a Ferrari produz 3500.

Na linha de produção (sim, apenas uma) os automóveis eram montados por pares de operários, sendo o processo inicial o posicionamento do chassis monocasco em alumínio, que é rebitado à mão na própria linha. Seguidamente este recebia o motor e caixa de velocidades de proveniência bávara, os travões e suspensões (de duplo braço independente à frente e a trás), e os restantes componentes do sistema de locomoção, como a direcção. Numa etapa final era acoplado o depósito de combustível.

Muitos destes componentes eram devidamente preparados em postos espalhados por toda a fábrica, o que tornava verdadeiramente intrínseco e caseiro todo o processo de fabrico, tomando todo o local um feelingde oficina à antiga e não de centro de expedições pós-montagem. Na oficina mecânica, por exemplo, eram soldados os componentes de escape e sub-estruturas em que se montariam os travões e suspensões no chassis. A montagem dos painéis em fibra de vidro, dos faróis, manetes, e restantes componentes integrantes ocorria na secção de montagem da carroçaria.

Entretanto, e de uma forma manual e rigorosa, eram cortados e cozidos – um a um – os painéis vedados pelo material previamente escolhido, numa secção designada por costura. Da mesma forma que imaginamos um desenhador a esboçar directamente sobre tela para um posterior corte, tal e qual se concretizava na fábrica da Wiesmann. O mais próximo que encontrávamos de automatismo eram mesmo as máquinas de costura, sendo a união dos diferentes painéis levada a cabo por uma só pessoa.

No sector ao lado encontrava-se a estação de electrónica, onde tomamos consciência de que, apesar de estarmos perante um automóvel “artesanal”, o conceito é no seu todo o de um automóvel moderno: ABS de última geração, controlo de arranque, controlo de estabilidade, caixa sequencial de dupla embraiagem SMG II… E tudo montado à mão por um operário, com cabos cortados à medida, um a um. Um trabalho de indubitável método e rigor.

Na zona de montagem final víamos o sonho tomar forma. Neste posto era montado o interior, backets, detalhes de carroçaria, capota (nos roadster), e jantes e pneus (todos os Wiesmann são equipados com Michelin Pilot Super Sport, um parceiro proveniente das participações da Wiesmann em provas de GT). Nesta zona era também efectuada a inspecção final completa do veículo.

“Porta com porta” encontramos a secção onde eram efectuadas as revisões e reparações, não sendo exclusivamente necessária a visita à fábrica para que tal ocorra, podendo diversos concessionários BMW por toda a Europa ser utilizados para as operações mais rotineiras.

No limbo

Por infeliz coincidência, a expansão das instalações da Wiesmann coincidiu com a quebra económica de 2009, o que deixou a marca às portas da falência. Ao final de 30 anos, a empresa fundada por Martin e Friedhelm não conseguiu encontrar uma entidade disposta a saldar as dívidas para com os fornecedores, levando a que a linha de produção, serviços de manutenção e departamento de engenharia fechassem portas a 31 de Março de 2014.

Todavia, no presente ano gerou-se alguma esperança para o fabricante, através das mãos de dois investidores e da incorporação do veterano da Mercedes, Mario Spitzer, para gerir as operações. Está confirmado o lançamento de um novo desportivo para 2019/2020 que deverá ser equipado com um motor V8 proveniente da BMW, possivelmente similar ao usado no novo M5.

No que toca à indústria automóvel declaro-me como um romântico, um apaixonado pelo que já não tem lugar, ou brevemente deixará de o ter, no amanhã. Talvez por isso me veja tão atraído para a Wiesmann, pelo ofício primoroso, pelo trato do fabrico do automóvel como algo especial, pela ligação ao que se cria com as mãos quentes, ao invés de garras frias, por um conceito, um primor, uma arte que, muito em breve, terá os seus dias contados. Quiçá pela sensação de que algo que “já nem é do meu tempo” esteja prestes a sumir, ou pela periclitante noção de que a indústria automóvel toma cada vez mais uma vertente de genérico/enfadonho/sobredimensionado ao invés de entusiasmante/apaixonante/único, o possível término da Wiesmann tenha outro impacto.

Obviamente que a designação de clássico nunca poderá ser tomada no sentido mais literal da palavra quando nos referimos a um Wiesmann, mas antes a uma certa essência nostálgica que nos fascina, acabando remetidos a uma única palavra: individualista. Pela aparência, exclusividade, personalidade e história, parece evidente que é apenas uma questão de tempo até que tal conceito se aplique, mas, por enquanto, resta-nos apenas o gáudio de ver que o passado ainda vive, num presente que parece ter perdido o seu Norte automóvel.

José Brito / Jornal dos Clássicos

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