Hidrogénio líquido: a aposta da Daimler Truck para o longo curso

05/10/2023

Nos últimos momentos, os funcionários da Daimler Truck e de entidades parceiras, bem como os jornalistas e demais convidados, disfarçavam a custo a ansiedade. Num ecrã gigante, era possível acompanhar as últimas centenas de metros do do percurso do Mercedes-Benz GenH2 Truck, um camião de 40 toneladas, que tinha saído da fábrica do construtor alemão em Woerth am Rhein, no estado da Renânina-Palatinado, 17 horas antes. O último obstáculo, antes de entrar no Minister Garden, em Berlim, era uma rua estreita e um portão, ambos à conta para tão majestoso veículo.

A prova final foi superada e este marco histórico, com o hashtag #HydrogenRecordRun, mostrou que era possível um camião elétrico com tecnologia de célula de combustível, pode desempenhar tarefas de longa distância, sem reabastecimento, até aqui apenas possíveis com camiões a gasóleo. O odómetro marcava 1047 quilómetros percorridos.

O momento em que são selados os depósitos de hidrogénio líquido, antes da partida. Apesar da baixa temperatura do hidrogénio no interior, a superfície dos depósitos está à temperatura ambiente

Os depósitos de hidrogénio líquido foram selados à partida e este desafio foi autenticado pela TÜV Rheinland. O camião, que é um protótipo, foi certificado para circular na via pública e percorreu a distância em condições reais, incluíndo carga completa.

Andreas Gorbach, administrador da Daimler Truck e responsável-chefe de tecnologia afirmou, à chegada: “Para descarbonizar o transporte, precisamos tanto de camiões elétricos de bateria quanto de hidrogénio. O ponto ideal para os camiões de células de combustível está nos transportes mais exigentes de longa distância. Ao ultrapassarmos a marca de mil quilómetros sem reabastecimento, demonstramos de forma clara que os camiões a hidrogénio estão longe de ser apenas conversa fiada e estamos a progredir muito bem rumo à produção em série. Ao mesmo tempo, este recorde indica também que a descarbonização do transporte requer dois outros fatores: uma infraestrutura de energia verde e custos competitivos em comparação com veículos convencionais.”

Andreas Gorbach, administrador da Daimler Truck e responsável-chefe de tecnologia junto ao camião Mercedes-Benz Gen H2 recordista

Porquê hidrogénio líquido

Antes da viagem, este camião foi abastecido com hidrogénio em estado líquido, fornecido pela Air Liquide, empresa francesa que produz moléculas de hidrogénio utilizando energia de fonte renovável, neste caso, a partir de biometano com garantias de origem.

Uma das novidades deste projeto é a utilização de hidrogénio em estado líquido, que requer a conservação deste elemento a uma temperatura inferior a -253 Cº.

A vantagem é a densidade energética superior à do Hidrogénio em estado gasoso (três vezes maior face a H2 comprimido a 350 bar). Como os camiões estão limitados pelo peso e pelo volume, o hidrogénio em estado liquido permite, por cada quilo, transportar o equivalente a 33,33 kWh de energia. Mesmo considerando que apenas cerca de 50% chegará ao motor elétrico, é uma relação interessante para o transporte de mercadorias de longo curso, com um alcance comparável ao dos camiões Diesel.

Uma boa notícia é que os depósitos laterais se mostraram bastante eficientes a manter a temperatura do hidrogénio abaixo do seu ponto de evaporação, sem refrigeração ativa (ou seja, sem gastar mais energia).

A Daimler Truck é subscritora do Acordo de Paris e comprometeu-se a atingir o net zero operacional nos seus mercados mais importantes — Europa, EUA e Japão — até 2039. O grupo espera que a tecnologia Fuel Cell possa contribuir para esse objetivo na segunda metade desta década.

Boas intenções, mas desafios complexos

Apesar do feito, que demonstrou a eficiência prática de um camião de longo curso a célula de combustível, ninguém tem dúvidas quanto aos obstáculos que falta ultrapassar para que o camião a célula de combustível se possa afirmar como uma real alternativa.

A este respeito, Joachim Ladra, da Cellcentric, empresa que resulta de uma joint venture entre a Daimler Truck e o Volvo Group para o desenvolvimento desta tecnologia, revelou: “A adoção generalizada depende de três fatores. O primeiro é a tecnologia. O camião e os seus componentes, incluíndo o sistema de pilha de combustível, precisam de funcionar pelo menos tão bem quanto os Diesel. Hoje ficou provado que estamos muito avançados a este respeito.

O segundo fator é a infraestrutura de reabastecimento. A legislação na Europa já está delineada e, se temos um camião que alcança 1000 quilómetros, podemos ter estações de abastecimento a cada 200 quilómetros. Estamos no bom caminho aqui e é expectável que estes dois fatores possam atingir maturidade para o mercado de forma sincronizada.

Quanto ao terceiro fator, um camião é um investimento. Existe para trazer receita ao seu operador. A decisão de compra é condicionada pelo custo total de propriedade. De momento, um camião a pilha de combustível é significativamente mais caro do que um Diesel. Precisamos de atingir paridade nestes custos e isso só será possível com o envolvimento dos reguladores. Na Alemanha, por exemplo, foi aprovada uma isenção de imposto de circulação, para os camiões sem emissões de CO2, a partir de 2024.
Quando tivermos estes três pilares alinhados, não vejo motivo que impeça esta solução de ser um fenómeno generalizado no mercado.”

A viagem foi feita em condições reais, com um peso total de 40 toneladas. A equipa de condutores conduziu durante 17 horas

Evolução tecnológica

Com o fim dos camiões Diesel nos principais mercados agendada para 2039, a Daimler Truck espera oferecer resposta a todas as utilizações com os camiões eléctricos de bateria e os elétricos Fuel Cell. Apesar de estar ciente da investigação e desenvolvimento relativa às baterias, Roland Dold, Responsável de Tecnologias de Baixas Emissões da Daimler Truck, afirma: “Esperamos evolução em ambas as tecnologias, com maior eficiência. Todavia, com 100 kg de hidrogénio líquido, temos pelo menos 1500 kWh para mover o camião [Ed: o total de energia embarcada é de 3300 kWh, mas a pilha de combustível transforma apenas cerca de 50% em energia elétrica, que transmite à bateria de tração]. É difícil acreditar que o desenvolvimento das células possa atingir esta densidade energética em breve. Nós acreditamos que a coexistência da tecnologia de bateria e de fuel cell se vai manter durante muito tempo.”

O que pensa o Welectric

Não há forma melhor de mostrar a viabilidade de uma tecnologia do que levá-la para o terreno. Nesse sentido, o camião Mercedes-Benz GenH2 cumpriu os requisitos, num desafio em condições reais. É um primeiro passo para provar que, tecnicamente, é possível. Um elemento digno de nota é que este protótipo tem por base um camião Diesel, pelo que não é uma plataforma dedicada.

Com elementos próximos aos de um camião Diesel e outros a um elétrico de bateria, o camião Fuel Cell tem depósitos de combustíveis laterais e uma bateria de tração de 70 kWh, mas estes elementos são específicos. Para melhor desempenho energético e de produtividade, o camião fuel cell vai precisar de uma plataforma própria, provavelmente dimensões diferentes e de enquadramento legal à medida também.
O abastecimento de um depósito de hidrogénio líquido tem que ser feito com equipamento completo de proteção e com formação adequada

A Daimler Truck mostrou grande frontalidade quando aos obstáculos a superar na adopção desta tecnologia, patentes também nas imagens de reabastecimento do camião. É que o hidrogénio em estado líquido requer cuidados de segurança específicos, sobretudo tendo em conta a sua muito baixa temperatura.

A origem do hidrogénio para esta utilização é, naturalmente, uma importante fonte de várias preocupações, em termos ambientais, logísticos e económicos. O hidrogénio produzido por eletrólise com energia de fonte renovável e sem emissões é demasiado dispendioso, com alguns analistas a apontarem um custo de energia cerca de dez vezes superior ao do mesmo percurso realizado com um camião elétrico e quatro vezes superior ao de um Diesel.

Outras alternativas de produção de hidrogénio terão preços mais baixos, mas dificilmente serão isentos de emissões, embora existam algumas formas de obtenção de hidrogénio com menor impacto do que aqueles que utilizam o carvão ou o gás e que certamente terão maior desenvolvimento, no contexto europeu de segurança e autonomia energética.

Estamos longe de valores de produção em escala para as duas novas tecnologias, mas o custo inicial de aquisição impõe respeito, com um elétrico a custar aproximadamente três vezes mais do que um Diesel e os Fuel Cell, é certo, ainda como protótipos, cerca de 4,5 vezes mais dispendioso do que seu equivalente a gasóleo.

Em suma, a viagem dos camiões a célula de combustível até à utilização corrente afigura-se bem mais difícil do que a realizada por este interessante camião Mercedes-Benz. Os primeiros 1000 quilómetros ficam para a história, um marco significativo num processo iniciado em 2020, quando a a Daimler Truck anunciou em Berlim o compromisso de investir em tecnologia de hidrogénio em grande escala. As próximas fases vão depender de muitos fatores externos e stakeholders do setor. A única certeza é de que acompanharemos com expectativa e interesse todos desenvolvimentos.