Piloto altamente versátil e multifacetado, Miguel Barbosa tem vindo a recolher sucessos nas modalidades por onde passa. A comprová-lo está o seu oitavo título no Campeonato de Portugal de Todo-o-Terreno (CPTT), confirmado há meras semanas como corolário de um ano difícil e atípico, mas no qual o desporto automóvel deu uma resposta forte e importante. Na entrevista que passa em revista a temporada de 2020, Miguel Barbosa fala também do projeto para 2021 e do sonho que “ficou a meio” – o Dakar.

Encontrar uma modalidade na qual Miguel Barbosa não seja nome de destaque é difícil. Com passagens pelos ralis, todo-o-terreno e velocidade, a consistência e rapidez têm sido argumentos utilizados para obter diversas conquistas importantes, como são os oito títulos do CPTT ou os dois campeonatos de Velocidade obtidos no passado.

Num ano atípico e bastante difícil, com as contingências da Covid-19, o piloto navegado por Pedro Velosa numa Toyota Hilux do BP Ultimate Vodafone Team, celebrou mais uma conquista perante uma concorrência bastante forte – aliás, um apanágio do todo-o-terreno nacional.

Motor24: Voltando ao início de um ano que foi atípico e bastante difícil, impõem-se duas perguntas: a primeira, como é que um piloto vê e resiste ao confinamento e paragem de todas as provas no meio da incerteza sabendo que há contratos com patrocinadores e, segunda, como é que é depois conseguir retomar a competição no meio das contingências?

Miguel Barbosa: Bem, o que é que não foi atípico em 2020? Para nós, foi um grande choque, porque tínhamos acabado de regressar ao campeonato de todo-o-terreno. Tínhamos começado a preparar tudo desde sensivelmente de outubro de 2019. Estávamos na máxima força no início de março, vencemos a Baja TT ACP, que foi a nossa primeira prova, e tínhamos uma serie de provas previstas de seguida e passados uns dois ou três dias dessa prova entrámos em confinamento total. Foi algo inesperado e repentino e a partir daí percebemos que estava tudo a ser paralisado a 100%. Foram momentos que duraram e de ansiedade, porque tudo o que eram competições desportivas estavam ser paralisadas por completo.

Foi um setor muito afetado, sem uma ideia de quando é que iríamos retomar as competições e essa foi a parte mais difícil – até quando é que isto ia durar. Obviamente, fomos falando com os nossos patrocinadores, que sempre estiveram solidários connosco. Mas tínhamos feito apenas uma prova, não era nada. Cheguei a temer que não fizéssemos mais nenhuma prova este ano.

Felizmente, as coisas foram andando e o desporto automóvel foi classificado de baixo risco pela DGS, tendo sido dos primeiros desportos autorizados a regressar. Acho que isso foi muito importante. Todos os planos de contingência foram cumpridos, houve um comportamento exemplar de todas as equipas, pilotos, participantes, clubes e a própria Federação [Portuguesa de Automobilismo e Karting] teve um papel preponderante nesta situação. Conseguimos realizar corridas e campeonatos, o que foi essencial para todos nós e para a modalidade sobreviver neste ano tão difícil que foi 2020.

M24: Aliás, o desporto automóvel acaba até por ser um exemplo de bom comportamento e respeito pelas regras sanitárias.

MB: Sim, houve um rigor muito grande, planos de contingência muito eficazes e seguidos à risca. Não se ouviu falar em nada que tenha corrido menos bem. Na última prova, que fizemos em Portalegre, todos tínhamos de ter testes PCR e a verdade é que todos os planos foram aprovados e as corridas, na sua maioria, fizeram-se. Foi um sinal muito importante para o desporto, um sinal muito positivo para os patrocinadores que investiram em nós e aos quis conseguimos dar o retorno que esperavam este ano. Como sabemos, o desporto automóvel é um dos principais em Portugal – há uma grande paixão pelo desporto automóvel e foi bom que neste ano tão difícil se tenha conseguido fazer minimamente as coisas.

M24: Ao cabo destes anos todos no todo-o-terreno, sendo uma modalidade tão competitiva e renhida, o que é que acaba por ser mais vantajoso: estar sempre numa posição de ataque ou tentar ser mais regular?

MB: É uma mistura das duas. Ao fim de oito campeonatos, já ganhei de todas as formas. Obviamente que se não andarmos na frente não ganhamos provas, mas se também não acabarmos não ganhamos provas e campeonatos. É uma conjugação dos dois aspetos. O todo-o-terreno é a conjugação de todos estes fatores, uma disciplina de gestão, mas é preciso também rapidez. Por algum motivo, também somos quem tem mais vitórias no campeonato e especiais vencidas. Vem com a experiência e com o tempo.

Obviamente, eu prefiro começar a ‘despachar serviço’ o mais rápido possível, que é para chegar à parte final do campeonato o mais descansado possível. Por diversas vezes já fomos para a última prova campeões. Obviamente que, se pudermos resolver as coisas com antecedência, melhor e é importante pontuar o máximo possível no início do ano.

M24: Sendo um piloto com tanta versatilidade e experiências de várias competições, como o TT, ralis e velocidade, o que é que consegues retirar de cada disciplina para aplicação noutra?

MB: Todas as disciplinas têm especificidades diferentes e todas se complementam e enriquecem. Por exemplo, o TT trouxe-me à velocidade um à-vontade e controlo do carro que eu não tinha, mas depois a velocidade trouxe-me um rigor de precisão e de consistência que é preciso para fazer voltas sempre iguais, que também é bom para aplicar noutro contexto. Depois, os ralis trouxeram velocidade pura ao TT. Cada modalidade consegue trazer um bocadinho de bom a outra. É experiência válida, são carros de corrida. Fazendo uma análise, é possível pegar em situações de cada modalidade e aplicá-las noutra e são sempre proveitosas.

M24: Dito isto, com todos os constrangimentos, como está a ser montado o projeto para 2021?

MB: Neste momento, tudo atrasou. As provas e os campeonatos acabaram mais tarde e tudo está mais atrasado. O que a pandemia fez foi atrasar tudo e chutar tudo um pouco para a frente. Neste momento, quando já deveríamos ter o nosso projeto bastante alinhavado para 2021, ainda não temos, porque ainda estamos a decidir com os nossos patrocinadores. Além disso, também estivemos empenhados em acabar o campeonato. Estamos, nesta fase, em plena decisão e a tentar perceber o que vai ser o início de 2021, que ainda não se sabe bem. Há que ter uma opção A e uma opção B. Aprendemos a viver com esta incerteza, que felizmente deverá passar em breve, mas temos de contar com ela nos próximos meses e é isso que vamos fazer.

Estamos a ver qual é que será a melhor estratégia, mas ainda é muito cedo. O nosso principal objetivo está conseguido, que era o oitavo título no regresso ao TT. Agora, é ver o que é que de interessante conseguimos fazer. Há pouco falava-se de ser eclético e temos gosto também nisso de fazer coisas diferentes e de propor desafios diferentes aos nossos patrocinadores, porque acho que é isso que enriquece os nossos projetos.

M24: Ao fim de oito títulos ainda sabem todos ao mesmo? Ainda há o dever de missão cumprida?

MB: O primeiro é sempre o primeiro, é muito especial, porque trabalhamos arduamente em busca do título. Nunca fui, nem sou, obcecado pelos títulos. Sou, isso sim, obcecado em fazer melhor em cada prova e em cada ano. Essa tem sido uma das receitas do nosso sucesso: concentrar-nos no que temos de fazer e não olhar tanto para os resultados, que eles surgem naturalmente, fruto de todo esse trabalho que não é só meu, mas de toda uma equipa que está connosco e do meu copiloto, o Pedro Velosa, e isso traduz-se em resultados. Obviamente, isso tem sido benéfico para nós.

O Dakar encontrou uma nova casa, excelente e perfeita, e voltamos a ter condições para voltar a tentar montar um projeto nesse sentido.

Mas, estamos nas coisas para ganhar e para fazer tudo bem feito. É nisso que me revejo e os nossos patrocinadores também. Claro que a ‘cereja no topo do bolo’ no final do ano é poder celebrar o título, mas não é isso que nos move. O que nos move é tentar fazer sempre melhor.

M24: Dentro desse espírito, o Dakar continua a ser um sonho?

MB: Sim, é um projeto que ficou a meio, porque acho que havia muito por fazer. Para mim, são os Jogos Olímpicos da modalidade. Temos sempre de conjugar a vertente desportiva com a dos nossos patrocinadores e na América do Sul a prova era muito longe e a diferença horária não jogava a nosso favor. Por vezes, era muito tarde quando acabavam as especiais, não era possível ter imagens e notícias em horas decentes, caía para o dia seguinte e já não era notícia. Na Arábia Saudita, é o contrário, o horário joga a nosso favor. Tive a oportunidade de lá estar este ano a ver a prova e tem condições únicas para realizar a prova, tanto financeiras, como logísticas. Acho que o Dakar encontrou uma nova casa, excelente e perfeita, e voltamos a ter condições para voltar a tentar montar um projeto nesse sentido. Estamos a trabalhar.

M24: Os últimos tempos têm sido também pródigos em sucessos de pilotos portugueses nas categorias de desporto motorizado, como são os casos do António Félix da Costa, Felipe Albuquerque ou o Miguel Oliveira. Achas que poderias beneficiar desta onda de sucesso para montar um projeto?

MB: São sempre pontos positivos, porque são sempre atletas de alta competição que trazem as modalidades e o desporto motorizado para a ribalta. É algo que nos enche de orgulho: quem é que não esteve aos altos a ver o Miguel Oliveira no triunfo na Algarve? É bom, é algo que se vê em família, com que todos vibramos e é algo único. Nós, felizmente, sempre tivemos muitos pilotos para que isso acontecesse. Somos poucos mas bons e não é só nos automóveis. Somos um país pequeno mas temos muitos desportistas de elite, somos um país muito rico em termos de qualidade de desportistas. Obviamente que cada vez que temos atletas a destacarem-se nas suas modalidades todos enriquecemos com isso, sem dúvida.

M24: Certamente que tens acompanhado o processo de eletrificação que tem vindo a ganhar espaço na indústria automóvel e também no próprio desporto. Como é que tens visto esta tendência quase garantida de eletrificação também no desporto motorizado?

MB: Não tenho tanta certeza disso. Não partilho dessa certeza absoluta. Acho que ainda é muito cedo. Todas as energias são válidas, o mundo precisa de todas para sobreviver porque cada vez consome mais energia. Julgo que há varias questões para resolver e temos visto líderes de grandes marcas a questionar isso mesmo, como o Carlos Tavares [NDR: CEO do Grupo PSA]. É preciso ir com calma, ainda é muito cedo para ter a certeza que o caminho é único. Acho que há espaço para todos. Para mim, um carro tem de fazer barulho.

M24: Um carro elétrico tem uma aceleração fantástica, ainda assim, fruto da entrega da potência imediata…

MB: Sim, mas as performances não nada a ver e acho que ainda estamos nos primórdios. há espaço para todos. Claramente, o desporto automóvel, neste momento, é a combustão e está para durar. Podem surgir novas coisas e são bem-vindas, mas é preciso dar tempo ao tempo para perceber o que será o futuro do desporto.

M24: Também revelaram recentemente a Extreme E, que é uma modalidade que leva a competição a alguns locais inóspitos do planeta.

MB: Sim. Mas na Extreme E também estão limitados em temos de quilometragem, com algumas voltas numa espécie de circuito. Ainda está num estado embrionário. São projetos interessantes, que têm muita divulgação, sobretudo acho que mais pelos pilotos envolvidos e não pela tecnologia em si. A Fórmula E tem que ver essencialmente pelos pilotos que lá estão e pelos sítios onde vão, podem ir ao centro das cidades, não pela tecnologia em si. Não tem comparação a Formula E com a Fórmula 1 em termos de prestações. Portanto, acho que há ainda muitos pontos de interrogação, muitas dúvidas. Não se pode ser radical nas decisões, é melhor ser prudente e avaliar as coisas.

M24: De todas as modalidades em que competiste, qual é, afinal, a tua modalidade preferida?

MB: O todo-o-terreno. Guiar em competição é sempre único. Mas, sem duvida que o todo-o-terreno é o que gosto mais. Gostei também muito de ralis em terra. Em asfalto nem tanto, mas em terra sim porque os carros são muito competitivos e dão um gozo bestial.

M24: Já falámos do Dakar, mas há ainda algum sonho que falte cumprir enquanto piloto?

MB: Sim, há algumas corrida icónicas que qualquer piloto gostaria de fazer. Se tivesse de escolher, teria de ser aquelas bajas, como a Baja 1000 na América, que são espetaculares. Suscita-me muita curiosidade, até pelo tipo de carros que têm, já que eles usam uma regulamentação completamente diferente do que se usa na Europa, são carros muito mais liberais, devem ser espetaculares de conduzir, com potências em torno dos 1000 CV. Le Mans veio à cabeça, um sonho para qualquer piloto. Uma prova mítica na qual já tivemos vários portugueses. Já fui ver várias vezes e já fiz na vertente Classic com o meu pai. É uma experiência única e que era algo que gostaria de fazer, mas também há que ver a parte racional, por profissão e não como prazer. É preciso fazer as coisas que são possíveis e acertadas.

Créditos das imagens: Aifa/Comunicação Miguel Barbosa

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