Crítico quanto à situação da Europa na transição para a mobilidade elétrica, Carlos Tavares, CEO da Stellantis, diz que se pode estar em vias de perder o acesso à mobilidade acessível para todos e alerta para os riscos da concorrência chinesa e das guerras de preços que podem levar a um “banho de sangue”.

Líder da Stellantis, um dos maiores grupos automóveis do mundo, que integra marcas como a Peugeot, Citroën, Opel, Fiat ou Alfa Romeo, Carlos Tavares considera que a transição para a mobilidade elétrica na Europa não está a acautelar a necessidade de uma “mobilidade limpa, segura e acessível para a classe média”, colocando em risco um dos pilares da democracia, que é o da liberdade de movimentos para todos.

À margem da conferência da Ordem dos Engenheiros, que se realizou no Porto, o homem-forte da Stellantis criticou “a demagogia e o dogmatismo, que são dois dos principais problemas na Europa” ao implementarem como caminho único a eletrificação sem se olhar a custos no desenvolvimento da tecnologia e na comercialização e, consequentemente, da acessibilidade por parte das classes média e baixa. Num tom bastante crítico, chegou mesmo a apelidar o dogmatismo de “doença do mundo ocidental, sobretudo da Europa”, sem olhar aos custos que são necessários para concretizar uma mobilidade mais limpa.

“Temos aqui um problema fundamental: o dogmatismo está totalmente desligado da realidade da vida das pessoas. Isso não é aceitável numa União Europeia que é uma união de países democráticos. Não é aceitável. Não se pode dizer ‘Amanhã de manhã, já não pode utilizar o seu automóvel. Porquê? Porque eu lhe disse!’. Não pode decidir que as pessoas vão perder a sua liberdade de movimento, simplesmente porque decidiu que não está alinhado com a estratégia de acabar com o veículo térmico. Eu posso acabar com o veículo térmico e estou a acabar com ele. Simplesmente, o custo para a sociedade desta transformação e o benefício ambiental que isto vai trazer tem um rendimento péssimo”, considerou.

Com um investimento previsto de 50 mil milhões de euros nas tecnologias de eletrificação e de software na próxima década, Tavares admite que as regulamentações têm de ser duradouras e, sobretudo, pensadas de forma lógica para beneficiar os cidadãos e, também, criar condições para a subsistência dos construtores.

“Eu acho que a solução é de pragmatismo relativamente simples. Se quisermos olhar para a realidade, há duas dimensões. A primeira dimensão é a idade média dos veículos em circulação. Em Portugal é de 14 anos e na Europa é de 12. Tomem como exemplo um carro atual de segmento B como o Peugeot 208 ou o Opel Corsa. Se compararem as emissões desses com os mesmos carros do segmento de há 15 anos, vão ver que as emissões foram reduzidas em um terço. Ora, se se for buscar ao parque de veículos em circulação um carro com 15 ou 20 anos, tirando-o do mercado e criando um subsídio para um carro mild hybrid, as emissões [de CO2] vão passar de 300 para 100 gramas. E vai poder fazer isso a um custo para o Estado e de preço para os clientes que é muitíssimo razoável. E que as classes médias podem pagar desde que custe menos de 20.000€. Simplesmente, essa solução tem um grande problema: é que esbarra no dogmatismo daqueles que não querem ouvir falar de veículos térmicos. A partir daí, quer-se impor a venda de veículos elétricos que, no mesmo segmento, hoje, custam entre 35.000 a 40.000€. Portanto, a classe média não pode comprar. Logo, não há volume, não há impacto e não se trata do problema do planeta”, aponta Tavares.

Chineses como ameaça

Como segunda dimensão, Tavares introduz a questão da chegada dos chineses, que reconhece terem “valor e qualidade, fazendo o seu trabalho”, mas com uma vantagem que é, logo à partida, o “custo cerca de 30% inferior à saída da fábrica” em comparação com opções semelhantes de marcas europeias.

“Vou combater os chineses de frente, não tenho outra escolha porque sou uma empresa global”

“Face a esta realidade, chegam os chineses que podem vender veículos elétricos ao preço dos veículos térmicos europeus porque têm essa vantagem de custos 30% inferior. Se eles o fizerem, que é vender os seus elétricos ao preço dos modelos com motor de combustão – o que não fizeram até ao momento por uma razão simples, porque não querem ser acusados de criar um banho de sangue social, mas podem a qualquer momento fazê-lo –, os construtores europeus só podem fazer uma coisa que é vender carros com prejuízo. Ou perder quota de mercado, o que quer dizer a mesma coisa. Se perder quota de mercado, a base de negócio é mais restrita, logo tem de se redimensionar a empresa e cria-se um problema social. Se vender os carros ao preço daqueles dos chineses, mas tendo custos de produção superiores, está-se a vender com prejuízo. Logo, reestruturação e problema social. Portanto, os governantes estão agora a esbarrar nesta realidade, que já há sete anos que estou a explicar, mas não ouvem. E não sou o único”, atira o CEO da Stellantis, que também discorda de qualquer ideia de protecionismo por parte da Europa.

A acontecer, diz, isso vai “agravar o preço dos automóveis fabricados na Europa para os europeus, criando assim uma espiral inflacionista e agravar o problema da mobilidade para as classes médias. A outra razão pela qual eu não sou favorável ao protecionismo é porque eu, de qualquer maneira, tenho de combater os chineses. Se não for na Europa, é em África, se não é em África, é na América Latina… Portanto, eu vou combater os chineses de frente, não tenho outra escolha porque sou uma empresa global, pelo que estou pouco interessado num protecionismo europeu”, recordando ainda que há o risco de represálias comerciais por parte da China.

Do populismo às consolidações

O CEO da Stellantis está também atento aos potenciais movimentos de mudança política na Europa e nos Estados Unidos da América, onde vão decorrer eleições em 2024 e onde o argumento da “perda de liberdade de movimentos por imposição” tem já sido utilizado como ‘arma’ de discursos populistas que podem desincentivar a adoção dos elétricos e mudar o caminho até aqui percorrido. E deu um exemplo muito concreto de como essa argumentação pode ser utilizada em prol do populismo no âmbito de uma democracia.

“Se estivermos numa equação em que as classes médias não podem comprar veículos elétricos, porque são caros demais, então está a pôr em causa a liberdade de movimento nas sociedades ocidentais que, na sua grande maioria, são democracias. Como são democracias, se eu chegar e lhe disser ‘olhe, cuidado que daqui a dois anos já não pode utilizar o seu automóvel, vai ter de ir de bicicleta, a cavalo, ou o que for’ e se eu chegar com uma oferta política a dizer ‘não se preocupe que eu vou parar com isso. Vote em mim que vou parar com isso’, o que é que está a acontecer? Está a acontecer que o mundo está-se a rasgar em duas vertentes políticas: a vertente dos progressistas, que tem uma característica muito triste, que é o dogmatismo, e a vertente dos populistas”, declarou.

“Portanto, os populistas vão utilizar o risco da perda de mobilidade, que é consequência do preço da mobilidade, que é inaceitável numa sociedade democrática, para dizer ‘vote em mim que eu paro com isso’. E os dogmáticos progressistas vão continuar: ‘Não, temos de ir mais depressa, mais depressa, porque o planeta está a arder’. Portanto, estamos a viver uma vertente política clara: os populistas vão ser contra o veículo elétrico, porque está a pôr em risco a liberdade de movimento dos cidadãos, e os progressistas dogmáticos vão tentar acelerar, porque há incêndios, porque há tudo o que a gente sabe. Portanto, está a haver uma linha de fratura. Reparem o que está acontecer nos Estados Unidos, basta ouvir o que eles dizem simplesmente. E que pode acontecer na Europa da mesma maneira. Portanto, imaginem que saem das eleições parlamentares europeias e da eleição presidencial americana mais populismo em que os populistas dizem ‘ei, vamos acalmar isso, as pessoas não podem comprar veículos elétricos’. Se eles acalmarem, eu acalmo os meus investimentos e, aliás, até provavelmente já investi demais e vou ter de apresentar a fatura a alguém.

Por isso, enquanto tivermos a sorte de estarmos a viver num país, numa região democrática, pode haver uma mudança de rumo, que é consequência do dogmatismo. O dogmatismo vai conduzir a problemas sociais na classe média. Se houver problemas sociais na classe média, o risco a que estamos expostos é que haja uma mudança de rumo político que ponha termo a essa direção de mobilidade”.

Este risco pode vir a ser, também, determinante para a solidez dos construtores europeus, sendo que o desafio da rentabilidade dos construtores reside agora no equilíbrio entre os investimentos necessários para responder à transição energética “imposta pelos governantes” e a potencial ‘guerra de preços’ que Tavares vê como uma séria ameaça à existência dos fabricantes. Perante este cenário, Tavares reconhece que poder-se-á assistir na próxima década a um panorama ‘darwiniano’ em que só os mais bem adaptados resistem. O resultado desse “banho de sangue”, como volta a apelidar, poderá passar por um movimento de consolidação entre marcas, com as mais vulneráveis a serem sujeitas a “uma consolidação por empresas mais fortes que se tenham preparado melhor para encaixar esse impacto”. Ou seja, o regresso de fusões em grande escala, mas que podem enfrentar barreiras legais pelas normas de ‘anti-trust’.

Reduzir custos para preparar o futuro

Desde que a Stellantis foi formada, como resultado da fusão entre a PSA e a Fiat Chrysler Automobiles (FCA), em 2021, que Carlos Tavares tem tirado o máximo partido do potencial sinergértico entre as 14 marcas que compõem esta ‘constelação’ (termo usado no seu discurso durante a conferência) para assim poder preparar melhor o futuro, o que é tanto mais importante, quanto mais imprevisível se revelam os próximos anos.

“Há sete anos que falo da perda de liberdade de movimentos, mas [os decisores] não ouvem”

“Se for ver os resultados do primeiro semestre de 2023, porque não posso falar do resto, verá que o nosso ‘break even’ – o nosso ponto morto de resultados financeiros –, está abaixo dos 40% das nossas receitas, ou seja, a saúde financeira da nossa empresa permite baixar as receitas de 60% e ainda estamos equilibrados. O que é na indústria automóvel mundial, de longe, a melhor performance. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que nós nunca paramos de reduzir custos. Nunca paramos de procurar soluções mais eficientes. Protegemos um certo nível de preço, não para estar fora do mercado, mas para não destruir valor. E fazendo isso, vamos protegendo esta capacidade financeira de encaixar choques. Obviamente que, ao reduzir custos quando a sua empresa é a mais rentável do mundo, os seus empregados vêm ter consigo e perguntam ‘senhor Tavares, porque é que você continua a empurrar tanta redução de custo? Está muito bom. O senhor está à cabeça da empresa mais rentável do mundo, porque é que está a reduzir custos?’.

“[A resposta é] porque estou à espera que isto venha a ser pior. Portanto, quanto mais os resultados forem bons, mais preocupado eu estou. Estou à espera do momento em que eles sejam menos bons. E, portanto, é fundamental compreender que a demagogia não nos teria permitido reduzir os custos de maneira permanente para guardar o ponto morto abaixo dos 40% para encaixar os choques todos que podem acontecer. As empresas que não fizeram isto se quiserem vender veículos elétricos com prejuízo vão abaixo. Se venderem caro demais, perdem metade dos clientes e vão abaixo. E aqui estamos nós: a trabalhar”, completou o português, que para os funcionários da fábrica de Mangualde, que irá arrancar com a produção dos seus primeiros elétricos ainda este ano, reservou apenas elogios e agradecimentos, sublinhando que o seu desempenho e espírito de inovação a colocam entre as melhores a nível mundial.

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