A eletrificação é, atualmente, o foco na luta pela redução das emissões no setor automóvel, mas essa é apenas uma parte da equação. Cléa Martinet, Vice-Presidente do Grupo Renault para a sustentabilidade garante que o automóvel tem de ser visto no seu todo – desde a produção à reciclagem.

Mais do que olhar apenas para a eletrificação como propriedade singular, o Grupo Renault trabalha em todos os aspetos relacionados com a ‘vida’ do automóvel para atingir o objetivo da neutralidade carbónica na Europa, em 2040, desde a produção à reciclagem dos veículos, passando pela reutilização das baterias. Cléa Martinet, Vice-Presidente do Grupo Renault para a área da sustentabilidade, destaca os diversos progressos obtidos nestes campos e exemplifica com o mais recente modelo da marca, o Scénic E-Tech Electric, automóvel que é 90% reciclável e composto por 24% de materiais reciclados.

“Para chegar à neutralidade carbónica, temos de nos focar, em primeiro lugar, nos materiais mais poluentes do automóvel. Como sabem, temos algumas centenas de componentes num carro, mas resumimos a questão a seis materiais estratégicos que são os mais ofensivos em termos de emissões de carbono. Assim, temos o aço, que é o pior, o alumínio, o vidro, os pneus, a microeletrónica e os plásticos (polímeros). Se nos concentrarmos nestes seis materiais, ganhamos a batalha desde que consigamos ter os fornecedores corretos e as quantidades acertadas”, refere, sublinhando a importância de contar com uma cadeia de fornecimento sustentável e de boas práticas ambientais.

“A principal dificuldade agora é a disponibilidade desses materiais de carbono reduzido porque têm um preço elevado, por vezes 30% superior ao dos outros. Por isso, tem um impacto enorme na equação económica de um carro”, complementa Martinet, salientando que a Renault tem de se preocupar com o seu posicionamento de preço em termos de produtos.

Cléa Martinet, da Renault, explicou todo o trabalho que está a ser feito pelo Grupo Renault na área da sustentabilidade, com destaque para a reciclagem e reutilização das baterias.

Neste sentido, o grupo criou recentemente a The Future is NEUTRAL, uma companhia que opera em torno de toda a cadeia de economia circular do automóvel, com grande foco para a reciclagem. Coloca-se, então, outro desafio na aspiração a um “ciclo fechado” na área da reciclagem: o da aplicação de materiais reciclados num automóvel, tratando-se de área de ação em que é preciso maior maturação tecnológica.

“No Scénic E-Tech, 90% do carro é reciclável. Mas, apenas 24% é [material] reciclado. Então, o que se passa entre nessa diferença entre os 90% e os 24%? Em primeiro lugar, esta questão do ‘ciclo fechado’ ainda não existe à escala. É bastante recente na indústria, tem de amadurecer. Ainda não temos a cadeia de valor adequada à escala para reciclar realmente tudo de carro para carro. Temos estado a investir nisto há 15 anos, mas ainda é uma área muito pequena, por enquanto. Essa é uma parte da questão. A outra razão para essa diferença entre os 90% e os 24% prende-se com o facto de não fazermos qualquer concessão na qualidade dos materiais. Têm de ser plástico de primeira linha, aço de primeira linha, alumínio de primeira linha, sem fendas, resistentes ao calor, ao frio e ao choque… têm de ter as mesmas especificações. E quando reciclamos perdemos sempre um pouco da sua resistência, um pouco de qualidade”, refere, esperando que a área da reciclagem se torne gradualmente mais evoluída e também mais acessível nos custos, o que ainda não acontece.

A fábrica que o Grupo Renault tem em Flins desempenha, então, um papel importante na estratégia dedicada à reciclagem da companhia, já que nessas instalações são recolhidos cobre, plástico, vidro e também as ponteiras de escape para serem depois reintroduzidos em novos carros. “Por exemplo, no novo Scénic E-Tech Electric, os plásticos para os revestimentos dos bancos são provenientes de materiais 100% reciclados na versão Alpine e de 87% no Iconic. Um quinto deste valor provém de cintor de segurança usados. Por isso, é um ciclo fechado e muito virtuoso em termos de redução de intensidade de carbono e de pegada ecológica”, afirma.

O potencial da segunda vida

Tratando-se de um dos componentes que mais pesam num veículo, tanto ambiental, como fisicamente, as baterias têm conhecido uma enorme evolução, sendo que a reciclagem e a sua reutilização são chaves para a sustentabilidade do setor. Cléa Martinet indica que o Grupo Renault tem desenvolvido novas abordagens para as baterias, que passam em grande parte pelo reaproveitamento para outras tarefas.

“Já não colamos os módulos das baterias. Não são moldados em resina que colam tudo. Os nossos módulos são separáveis para que possam ser substituídos e a bateria é reparável. No Scénic E-Tech, os 12 módulos da bateria são destacáveis e reparáveis. Mas há uma segunda vida que permite aproveitar três módulos e alimentar um barco, por exemplo. Ou podemos multiplicar esse valor por três ou quatro e juntar outros 40 ou 50 módulos e dar energia a um prédio. Ou seja, a segunda vida é muito mais rica, tem muito mais potencial quando se separam os módulos porque se podem juntar ou separar para um uso mais concreto”.

“É uma ótima utilização e é o que a Mobilize [NDR: área de soluções de mobilidade do grupo] está a fazer neste momento, já reaproveitámos cerca de 3000 baterias até agora”, explica a responsável, dando ideia do potencial deste tipo de utilização, sobretudo numa fase em que França tem em vigor uma norma que obriga os construtores a recolher os seus veículos em fim de vida e garantir a sua reciclagem. Além disso, o conceito de segunda vida das baterias melhora a pegada ecológica associada, sobretudo uma vez que é reduzida a necessidade da sua produção com recurso a materiais raros ou danosos para o ambiente.

Adicionalmente, nesse mesmo ‘campus’ técnico e tecnológico de Flins, a Renault estreou o seu conceito ‘ReFactory’ de aprumo e requalificação de automóveis usados, que são totalmente revistos e recolocados à venda como usados certificados com garantia. Martinet destaca, também, a importância desta solução, não só no âmbito ecológico, mas também social.

“Tem sido um sucesso, também social. Porque a fábrica estava para fechar no início de 2020 depois da decisão da Renault de não produzir mais veículos a combustão em França. Assim, os 3000 postos de trabalho foram preservados. A fábrica foi requalificada e modificada em dois anos e as pessoas que antes produziam carros agora estão dedicados à renovação e melhoria de carros. É bom do ponto de vista humano e é fiel à história da Renault. Por isso, de um ponto de vista social, é ótimo e, economicamente, sim, está a ganhar tração. Vamos poder ter uma linha de renovação para até 30.000 veículos por ano em 2025. E agora vamos lançar uma outra linha de requalificação para veículos pesados, como camiões e comerciais”, completou.

Vários caminhos para a neutralidade

Martinet também aponta que o caminho para a neutralidade carbónica na mobilidade pode ser obtido de outras formas que não apenas a elétrica. Aqui, entram na equação o hidrogénio, para o qual o grupo tem uma área dedicada, a HYVIA, e os combustíveis sintéticos, através de uma colaboração com a Aramco, da Arábia Saudita.

Quanto ao hidrogénio, a grande questão é a forma como é produzido, “mas, admitindo que temos hidrogénio de muito baixo carbono, que é o que fazemos na HYVIA, conseguimos baixar a pegada de carbono da bateria, o que é ótimo, porque precisamos de uma bateria mais pequena para a mesma autonomia. O nosso Scénic Vision Concept tinha este conceito, com uma bateria de 40 kWh e um tanque de hidrogénio para uma autonomia de 800 km”. No entanto, além da sua produção, elenca outros desafios: “como será a infraestrutura de abastecimento, será acessível a todos? É um caminho que estamos a explorar porque a posição do Grupo Renault é que os carros elétricos não são a única solução para todo o mundo. Temos de examinar o que acontece com os combustíveis sintéticos e com o hidrogénio, porque a eletricidade não pode ser solução em todo o mundo, como em países do terceiro mundo ou em desenvolvimento na América Latina ou no Norte de África. Nem todos têm uma rede de carregamento nem poder de compra para os veículos elétricos”.

Já para os e-Fuels, mesmo sendo uma ótima solução em termos de captação de carbono, tudo dependerá do seu desenvolvimento e do potencial de produção, com Cléa Martinet a dizer-nos que “tem muitos ‘ses’ à sua volta, mas estamos também a puxar por isso porque sabemos que é uma boa solução desde que seja produzido com energia renovável e que o preço seja um pouco mais baixo do que é agora”.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.