Vamos por partes. ‘Gran Turismo’ é uma das franquias mais famosas do mundo dos videojogos, tendo sido lançada na Sony Playstation em 1998, numa época em que os simuladores de condução não eram propriamente a norma, sobretudo, nas consolas. Nos computadores, alguns jogos já entravam por esse campo, como a saga ‘Grand Prix’ de Geoff Crammond, dedicada à Fórmula 1. Hoje, na era da Playstation 5, a franquia vai no seu sétimo título principal, procurando uma vez mais trazer para aquela consola os privilégios de competir com máquinas mais extremas e em locais a que poucos podem ter acesso. Kazunori Yamauchi, mentor e responsável pelo primeiro jogo, continua a ser a figura de proa desta saga e também teve uma participação importante na criação do filme (o que torna o resultado final menos consistente…).
A saga ‘Gran Turismo’ é, pois, a fonte de inspiração para o filme homónimo, produzido precisamente pela Sony e pela Playstation Productions, com Neill Blomkamp como realizador. Adepto de películas altamente movimentadas e com um foco muito forte na aliança entre o digital e o real (em ‘Gran Turismo’ as conversões de simulador doméstico em carro de competição ou a desconstrução do mesmo em pista são interessantes do ponto de vista estético), o realizador sul-africano é conhecido por ter no seu currículo filmes marcantes como ‘Distrito 9’, ‘Chappie’ ou ‘Elysium’, tendo mesmo chegado a ser apontado como realizador de um filme da saga ‘Alien’, embora cancelado.
A sinopse do filme é autodescritiva: esta é a história de como a Nissan e o jogo ‘Gran Turismo’, através da produtora Polyphony Digital, se aliaram para dar vida à GT Academy, uma academia que procurava encontrar os melhores pilotos/jogadores virtuais no jogo para, numa série de competições e desafios em pista, colocá-los no terreno a sério, ou seja, entre os pilotos profissionais ao mais alto nível. Mais concretamente, esta é a história de Jann Mardenborough (interpretado por Archie Madekwe), jovem de Cardiff, que contra todas as expectativas, vence a sua edição da GT Academy para representar a marca nipónica nas pistas de competição.
Indo um pouco mais fundo, é uma história que retrata a aprendizagem da competição em pista e as dificuldades, sobretudo emocionais, dos momentos mais dramáticos, nos quais a perseverança e empenho de Mardenborough são postos à prova.Duas formas de ver
Como muitos filmes relacionados com automóveis, é difícil fazer uma história que não seja, ou demasiado técnica, ou demasiado livre. ‘Gran Turismo’ fica neste limbo, com duas formas de ver. Por um lado, é um filme que se baseia numa história real, ora colada nalguns pontos ao realismo dos acontecimentos, ora voando livremente ao sabor da criatividade e da intenção de manter colados ao ecrã aqueles que não são propriamente adeptos da franquia. É um ato de equilibrismo complicado que tem resultado misto.
Um dos maiores devaneios criativos prende-se com a linha temporal. Mardenborough venceu a GT Academy em 2011, mas no filme vemos as consolas mais recentes e os carros mais recentes, como o Nissan Ariya (além de todos os outros carros de competição), o que coloca a história algures entre os nossos dias. Lá está, para quem não se interessar por estes preciosismos, torna-se mais apelativo ter uma história contemporânea, na qual temos Instagram, Playstation 5 e carros elétricos a rodos na estrada.
Sem contar muito da história, outro evento, o acidente de Mardenborough, também é deslocado temporalmente no que diz respeito à realidade, assim como o próprio resultado do trio de jogadores nas 24 Horas de Le Mans.
Épico automóvel
De resto, não deixa de ser uma história encantadora, quase ao jeito dos contos de fadas, em que a superação e a dedicação pagam dividendos, aqui na forma de um lugar na equipa de competição da Nissan, numa narrativa ntercalada com momentos de delicadeza interessantes como o do relacionamento familiar do jovem, sobretudo com o pai (interpretado por Djimon Hounsou), para quem não foi fácil aceitar que a vida de jogador de consola teria como resultado uma carreira de piloto.
Aliás, destaque para o papel de Hounsou, secundário, mas com uma abordagem muito realista próxima à de todos os pais que desejam o melhor para os seus filhos, mesmo que isso lhes renda um conflito geracional. Os atores estão num bom patamar, alinhando-se pela tónica de vivências relacionadas com a competição, como é o caso do carismático Jack Salter (interpretado por David Harbour), que serve de engenheiro-chefe e instrutor da GT Academy, ou de Danny Moore (interpretado por Orlando Bloom), responsável de marketing da Nissan que tem a ideia de criar a GT Academy.
Adicionalmente, há que contar com a estética característica de Blomkamp de imagens vertiginosas e de aposição de grafismos como que a replicar os dos videojogos, procurando encaixar em apenas duas horas e 15 minutos muitos eventos de ‘vida real’, sendo essa também uma questão que joga contra o filme.
‘Gran Turismo’ arrisca contar uma história na sua essência sem querer ficar preso a amarras do realismo puro e duro. A ideia está lá. Os jogadores deverão gostar. Os entusiastas dos automóveis também. Mas, talvez apele mais aos ‘casuais’ de cada um dos lados.
Quando assim é, é sempre importante recordar que o cinema nasceu para contar histórias e que a realidade, mesmo que seja a base de tudo, está lá para ser usada como inspiração e não como determinismo. Se é um facto que entretém, não é o filme sobre ‘Gran Turismo’ que os adeptos da franquia certamente esperavam.
O filme ‘Gran Turismo’ estreia nas salas de cinema portuguesas a 10 de agosto.
Miguel Faísca, o vencedor português
Depois de ter participado na Blancpain Endurance Series e de ter mesmo conseguido vencer as 24 Horas do Dubai na classe SP2, Faísca voltou a dedicar-se, em grande medida, à competição virtual, sob o papel de diretor de equipa de eSports da Aston Martin Fórmula 1.
Apontando que o filme ‘Gran Turismo’ relata uma história para o cinema, para agradar a mais gente, Miguel Faísca não deixou de lembrar os momentos de grande competição na GT Academy, passados dez anos, naquele que foi o concretizar de um sonho.