Na cerimónia de apresentação oficial da Stellantis, grande grupo automóvel que passará a agrupar os grupos Peugeot S.A. (PSA) e Fiat Chrysler Automobiles (FCA) numa só entidade, Carlos Tavares garantiu que a fusão entre as duas companhias pressupõe uma proteção para os trabalhadores e para as fábricas ao mesmo tempo que possibilita o aumento da rentabilidade conjunta.

O CEO da Stellantis, que operou uma recuperação notável da PSA após anos de grande dificuldade nos anos de crise no início da década de 2010, explicou quais os seus objetivos e premissas para a nova companhia, que conjuga a experiência e competências dos grupos PSA e FCA.

Profundo conhecedor da indústria automóvel, Carlos Tavares aborda diversos temas, não se escusando a comentar temas mais delicados relativos à eletrificação, mobilidade ou redução de custos.

Sobre as marcas da Stellantis: “Pretendemos que as marcas sejam respeitadas na sua diferenciação e na implementação de diferentes padrões para a qualidade. Esperamos deixar os clientes satisfeitos. Se estes não estiverem satisfeitos, temos um potencial de disrupção. A Stellantis vai ser a soma de todas as suas partes. Vai ter uma lógica de criação de valor, permitindo a sustentabilidade e capacidade de desenvolvimento de produtos e soluções versáteis e acessíveis. A experiência combinada das nossas equipas vai melhorar a nossa combatividade e as nossas marcas icónicas irão refletir a nossa paixão pela liberdade de mobilidade. Teremos ainda em conta a satisfação do cliente rumo à inovação e criatividade, caminhando rumo a um futuro neutro em carbono”.

Carlos Tavares (à esquerda) será o CEO, com o apoio do Conselho de Administração presidido por John Elkann [à direita). As sinergias decorrentes da fusão permitirão uma poupança anual na ordem dos 5 mil milhões de euros.

Sobre a eficácia organizacional: “Temos uma maneira muito refinada de gerir os nossos negócios, com nove principais comités, que vão tomar todas as decisões de uma forma profissional e rápida. Vai-nos permitir ter uma execução em sintonia com os nossos objetivos. Vamos usar toda esta família para obter um benchmark interno muito significativo e vamos explorar a diversidade dos nossos efetivos, tirando partido das múltiplas culturas que temos, com horizontes muito diferentes. Damos valor à originalidade, utilizando da melhor forma a extraordinária a diversidade da empresa, que é uma das nossas grandes forças. Podemos comparar isso com a falta de diversidade de alguns dos nossos concorrentes. Temos mais de 400 mil pessoas, mais de 150 nacionalidades na nossa empresa, num espírito de performance, eficiência e agilidade para responder aos novos desafios. São mais de mil anos de experiência acumulada entre todas as marcas”.

Sobre a perspetiva de evolução de mercado: “Temos uma gama presente em quase todos os segmentos de mercado, desde os automóveis de luxo aos premium, passando pelos comerciais e generalistas. Como objetivos, temos de ir além das expectativas dos clientes, queremos contribuir para uma experiência sustentável e líder. Vamos ter de ser neutros em carbono, pelo que vamos reforçar a aposta na mobilidade elétrica e na mobilidade partilhada. Os elétricos poderão representar mais de 35% das vendas até 2030. Vamos também apostar nos veículos com conectividade 5G. As regulações técnicas e outras inovações tecnológicas a adotar poderão aumentar os custos entre 20 a 40%, mas a nossa empresa poderá reagir a estes impactos. Na vertente da mobilidade partilhada, temos duas marcas, com a Free2Move e a Leasys, enquanto o cliente terá uma nova abordagem, de estilo 360º para atender a todas as suas necessidades. A nível tecnológico, temos uma parceria com a Waymo para o desenvolvimento da condução autónoma, enquanto para os automóveis temos a vantagem de plataformas multi-energia. Tudo desenvolvido e fabricado ou internamente ou no âmbito de jointventures com grandes grupos. O efeito de escala vai ajudar-nos a limitar os custos de pesquisa e desenvolvimento e vamos ter também a possibilidade de oferecer nos próximos cinco anos uma mobilidade segura e limpa e acessível. Temos 29 modelos eletrificados à venda e queremos ter mais dez no final de 2021, ou seja, 39 modelos eletrificados, o que mostra que estamos no bom caminho e alinhados com a perspetiva do mercado. Até 2025 todos os modelos lançados terão, pelo menos, uma versão eletrificada, sendo que esses têm de ser acessíveis para os clientes”.

Sobre a Peugeot nos EUA: “Com 14 marcas no nosso portefólio, temos uma base forte para poder acelerar determinadas coisa. Não podemos investir em todas as marcas com prioridade, mas com a Stellantis vamos poder fazer carros com preços menores, mas termos uma maior fluidez e melhor rentabilidade, com oportunidades entusiasmantes que trarão maior lucro. Vamos ver que algumas dessas marcas vão ser refeitas. Estamos a falar com os nossos clientes sobre essas marcas e vamos fazer uma clarificação das mesmas e do seu posicionamento. Neste momento, é mais importante concentrarmo-nos no crescimento e rentabilidade das marcas atuais do que trazer novas marcas para alguns mercados. É melhor focarmo-nos no que já é rentável, o que está a ser feito com mérito pela equipas da FCA nos EUA. Por agora, não temos uma decisão tomada para a Peugeot na América. A marca tem uma presença muito forte na Europa, África e Ásia e vamos continuar a fortalecer esse caminho”.

Sobre a estratégia para a China: “Neste mercado, não excluímos nada neste momento. Os resultados no país têm sido no mínimo desapontantes, pelo que estamos a analisar as razões e temos uma equipa a analisar o que correu mal, voltando com uma nova estratégia para a China que será discutida e validada. Nesta fase não excluímos nenhum cenário”.

Sobre a mobilidade elétrica e as regulações por país: “Os mercados têm de decidir se querem ter industria automóvel ou não. O mesmo se passa com a mobilidade e se os governos querem ter uma mobilidade acessível, limpa e segura ou não. Mas há limites para os ventos de resistência que podemos enfrentar. As nossas equipas têm enfrentado bem [o cenário], mas todas as equipas têm limites. Não podemos continuar a acrescentar constrangimentos na indústria automóvel. A eletrificação é um exemplo, temos a tecnologia, temos a capacidade de produção, mas seremos capazes de assegurar, no final do dia, que essa mobilidade será acessível ao poder de compra dos clientes? A eletrificação significa um aumento de custos, pelo que ou as companhias se colocam em risco reduzindo a margem por cada veículo – não refletindo o aumento de custos no preço – ou aumentam os preços e perdem parte dos seus clientes. Ou encontramos outro caminho. Mas a eletrificação não está a ir no sentido de ser altamente acessível para a mobilidade da classe média. A pergunta que fazemos aos governos é em que medida é que querem melhorar isso. A eletrificação não é barata. Sabemos que os custos irão descer com o volume, mas a acessibilidade é essencial.

Sobre a pegada ambiental dos elétricos:Os elétricos não são novos para nós. Como temos vindo a discutir desde há três ou quatro anos, não podemos olhar para as emissões de uma perspetiva de ‘tank-to-wheel’ [NDR: apenas referente à condução], mas de uma abordagem total, analisando desde a extração do material à produção do carro, analisando a pegada de tudo o que contribui para a mobilidade. Isso não pode ser só com o carro, mas tem de se avaliar também a extração dos materiais, o transporte dos mesmos e a reciclagem das baterias, bem como a criação de uma rede extremamente densa de carregadores, com os custos necessários convenientes para o aumento de volume esperado. Tem de se ter em conta ainda os impostos que vão desaparecer com o fim dos motores de combustão e do qual muitos governos retiram uma grande receita.

A vida de um veículo elétrico surge logo com uma penalidade que é a construção e tem se ser conduzido por muito tempo para equilibrar as contas de emissões face a um carro com motor de combustão interna. Isto é público e está por muito lado. A responsabilidade pela escolha da tecnologia está no lado dos políticos e não dos construtores e as regulações apenas podem ser cumpridas de acordo com uma determinada tecnologia. No final de contas, a decisão científica na tecnologia é feita pelos governos. Nós estamos aqui para apoiar, o que não quer dizer que não devamos explicar as coisas como temos feito de forma ética e realista. Temos cumprido os regulamentos estabelecidos para as emissões. A Stellantis é líder nas emissões de CO2, com mais de 29 modelos eletrificados. Estamos a cumprir, mas se olharem para o ciclo de vida de um automóvel poderão ter surpresas. São estudos independentes que não são feitos por nós, que podemos ser observados como parciais. A análise terá de passar a ser mais rigorosa e completa, incorporando a pegada da produção da bateria e da produção de energia necessária. Se é esse o caminho menos custoso para atingir a mobilidade zero? Têm de perguntar aos governos. Nós estamos cá para cumprir com imensos investimentos”.

Sobre os potenciais cortes de empregos e fecho de fábricas: “A Stellantis vai trazer maior eficiência e eficácia para as suas marcas. Através do volume de escala e sinergias com a produção de carros ‘irmãos’ mais acessíveis, podemos fazer planos mais ambiciosos para modelos que até agora não poderiam ser decididos, porque não eram rentáveis, alguns de marcas italianas. Com a Stellantis alguns modelos vai ser rentáveis e vamos poder decidi-los Esta fusão é um escudo para proteger a atividade das fábricas e não um fator de risco que cause ansiedade de quem trabalha nessas fábricas. É um escudo e não o contrário. Mais modelos, mais atividade, mais proteção para as nossas fábricas e trabalhadores, incluindo em Itália. A Stellantis é muito mais uma solução do que um problema. Crítico seria a não concretização desta fusão. Temos feito um grande trabalho nas nossas marcas e penso que o demonstrámos nos últimos anos. Não será fácil, nada é fácil nesta indústria. Mas todos temos de fazer o melhor, para que alinhemos todas as estrelas e tornemos o cliente satisfeito com carros de alta qualidade e rentáveis”.

Sobre o futuro da Fiat e replicação da situação efetuada com a Opel: “Creio que temos respostas claras. Se considerarmos que precisamos de trazer modelos Fiat mais jovens, temos as ferramentas certas para tornar esses modelos rentáveis e estou convicto de que vamos ter formas rentáveis de fazer novos modelos, como aconteceu como o novo Corsa da Opel, que vende mais do que o rival direto de um dos nosso concorrentes germânicos. Podemos fazer o mesmo com os modelos italianos. Hoje ainda é o primeiro dia pelo que não há decisões, mas é o sentido no qual vamos trabalhar. Temos de trabalhar com eficiência e eficácia das fábricas italianas e creio que também querem melhorar e vamos introduzir standards que permitirão melhorar e tornar mais rentáveis as suas operações. Poderemos oferecer todos os padrões internos de produção e formas de inspiração para os trabalhadores.

Quanto às emissões, em comparação com a Opel, é uma situação diferente. Creio que não temos problemas de cumprimento de CO2 na Stellantis nos próximos anos, pelo que será diferente da Opel, onde tivemos de cortar modelos para cumprir com as metas estabelecidas. Agora, estamos a implementar um plano de produto eletrificado e forte, depois do sucesso do novo Corsa, como é o caso do Mokka. Na Fiat, não teremos problemas de CO2 pelo que os planos para o futuro poderão ganhar asas. Vamos cumprir com as metas nos próximos três a cinco anos”.

Sobre a posição da Opel e possível confusão com outras marcas da Stellantis: “A Opel é alemã e vai continuar a sê-lo. O que falta fazer? Devido Às exigências e progressos constantes, o trabalho nunca para para garantir uma mobilidade segura, limpa e acessível para ir ao encontro dos objetivos dos nossos clientes. Reparemos ainda que, na primeira metade de 2020, depois de todas as mudanças, a Opel foi rentável naquela que foi a pior fase da crise de Covid-19, o que diz muito do trabalho de ‘turnaround’ que foi feito pela equipa da Opel e que diz muito do trabalho feito por Michael Lohscheller [NDR: CEO da Opel] numa fase muito difícil. Temos um mix de produtos muito ambicioso para os próximos anos, porque têm a tecnologia adequada e certa. Não é a rentabilidade desejada, ainda. As nossas marcas são constantemente avaliadas, mas há espaço para melhorar, tal como há espaço para melhorar a imagem da marca e o seu posicionamento. É importante que todos percebam o que a Opel significa e onde se situa. Temos de saber que todos sentem o mesmo, fazem o mesmo e trabalham no mesmo sentido. Não existe intervalo na indústria automóvel, estamos sempre a rumar em frente, sempre a tentar fazer melhor para o beneficio dos nossos clientes e não creio que tenhamos qualquer problema com o posicionamento da marca em comparação com a Citröen ou com a Fiat”.

Sobre cooperação com grandes empresas tecnológicas, como a Apple: “Qualquer cooperação com as grandes empresas tecnológicas está sempre em aberto. Aliás, qualquer parceria estratégica que seja vantajosa para as duas partes estará sempre em aberto. A parceria com a Waymo é um exemplo. Queremos que as pessoas saibam que a Stellantis está aberta ao negócio desde que seja um negócio vantajoso para ambas as partes”.