O edifício tem a denominação ‘Nave A-122’, sendo precisamente este o número que marca o edifício em Martorell, no qual a SEAT cuida do seu passado com grande minúcia. Mas os olhares do público não são admitidos, salvo raras exceções. Entre essas, estão eventos como o que nos levou a Barcelona para a celebração do 40º aniversário do Ibiza, que é um dos modelos mais emblemáticos da companhia espanhola.
Isidre López, responsável da divisão SEAT Históricos, ‘abre’ a visita guiada aos modelos históricos da coleção com uma simples observação: “esta é uma visita pela história da marca, mas também pela própria evolução da sociedade espanhola ao longo dos anos, refletindo os seus progressos e tendências”. Ou seja, como em qualquer outra área, o automóvel reflete as necessidades de mobilidade e, sobretudo, o aumento do poder de compra da sociedade e a transformação económica que levou Espanha até aos dias da União Europeia.
Aqui estão presentes mais de 170 automóveis, distribuídos por alguma lógica temporal, sendo que o espaço começa a escassear – até porque agora incluem-se também os CUPRA – e a expansão está já planeada para tentar receber mais modelos. Em lados contíguos à nave central estão áreas de mecânica e restauro e de armazenamento dos ‘clientes’ que se seguem para a devida recuperação. O estado destes últimos varia entre o razoável e o péssimo, nalguns casos prevendo-se um trabalho de renovação praticamente do zero, aproveitando meramente a carroçaria.
A equipa de pessoal que trabalha na área da SEAT Históricos também é parca, contando-se dez pessoas a tempo inteiro, duas das quais dedicadas à oficina de manutenção. Depois, há elementos ainda importantes para a catalogação e acompanhamento de documentação, bem como responsáveis para a reposição de peças, que é fulcral para manter o ‘sistema’ a funcionar. Note-se que, em muitos casos, encontrar peças de substituição é uma tarefa desafiante.
Desses mais de 170 automóveis, a grande maioria tem motor e está em condições de funcionamento, embora alguns exemplares sejam apenas de exposição, nomeadamente, aqueles que foram produzidos para os salões automóveis como concepts – previsões estilísticas de um futuro que acabou por chegar, nalguns dos casos. Noutro, apenas esboços tornados reais de projetos que, entretanto, caíram no esquecimento.Arranque na década de 1950
A ‘viagem’ pelo passado da SEAT começa, precisamente, com o seu primeiro modelo, o 1400, que mais não é do que um Fiat 1400 produzido sob licença da marca espanhola ao abrigo de um acordo entre as duas companhias que durou por várias décadas. A versão da SEAT chegou ao mercado em novembro de 1953, sendo praticamente idêntico ao Fiat. Mas o arranque da produção deste modelo foi relevante para estabelecer ritmos e processos de construção para a fábrica, na qual trabalhavam 925 pessoas. Até 1960, produziram-se mais de 50.000 unidades, chegando-se a produzir a um ritmo de cinco veículos por dia. Logo a partir do primeiro ano foi possível fabricar na Zona Franca de Barcelona mais de 90% dos componentes necessários, incluindo o motor.
Adicionalmente, produziram-se algumas variantes especiais como a 1400 Visitas, pensado para transportar pessoas de alto gabarito, dotado de um estilo mais requintado e com maior número de cromados.
O 600 era um automóvel simples, que replicava, uma vez mais o seu homónimo italiano, com motor de 633 cc, 575 kg de peso e 18 CV de potência, subindo em 1970 para os 24 CV de potência, ano em que o modelo passou a ter também portas de abertura comum. As derivações foram em grande número, como a 600D, 600L ou o 800, que tem por base o 600, mas que foi alongado para oferecer quatro portas, numa ‘invenção’ específica da marca espanhola sem intervenção da Fiat.
Os 600 deram ainda origem a outras versões como a Siata, uma variante bastante original que foi produzida em apenas seis unidades, uma das quais para Salvador Dalí, ou até uma comercial para o setor da distribuição.
Na mesma lógica de parceria com a marca italiana apareceram os SEAT 1500 e os 124, estando uma unidade bastante especial deste último na coleção da marca. Trata-se da unidade ‘Um Milhão’, produzida a 14/07/69, a qual foi sorteada entre os empregados da marca catalã. O ‘felizardo’ foi um jovem funcionário, recém-casado e sem carta de condução, mas que, como explica Isidre López, era também um pouco como um “presente envenenado, pois o vencedor do sorteio tinha de pagar os impostos necessários para a sua matrícula”. Assim, pesando bem os prós e os contras, decidiu doá-lo à SEAT, permanecendo ainda hoje na coleção de viaturas.
Para o 127 fica reservado o estatuto de ‘best-seller’ com mais de um milhão de unidades vendidas, caracterizando-se por ser muito económico e espaçoso.
Tensões italianas e um Papamóvel em tempo recorde
Mas é na década de 1970 que começam a surgir os primeiros focos de tensão com a Fiat. O Sport Boca Negra, assim denominado pela secção dianteira em preto, foi desenvolvido pela SEAT no Centro Técnico de Martorell, criado em 1975, e tornou-se num sucesso ao qual a Fiat foi praticamente ignorada no processo. Inicialmente, tinha um motor 1.2 de 124 CV, evoluído mais tarde para um 1.4 de 77 CV e prestações mais desportivas.
Criação bem especial para uma figura reverenciada foi o Papamóvel desenvolvido a pedido da comitiva do Papa João Paulo II antes da sua visita a Espanha, em 1982. Depois de avaliarem antecipadamente o percurso, a ‘entourage’ que preparava a visita do Sumo Pontífice percebeu que alguns locais seriam de difícil acesso para o seu Papamóvel usual (um Land Rover), nomeadamente no acesso aos principais recintos, os estádios do Real Madrid e do Barcelona.
Os trabalhadores removeram o teto e os vidros e criaram uma estrutura tubular acolchoada na parte de trás onde o Santo Padre se podia aguentar, saudando enquanto estava de pé. Não sendo um carro blindado, só foi usado dentro dos estádios por razões de segurança. As próprias jantes eram uma homenagem à igreja católica, pelo seu formato.
Mas de Itália, não vieram só boas novas com a vinda do Papa. Quebrou-se a parceria entre a SEAT e a Fiat, muito por ‘obra’ do Ronda, o primeiro SEAT com nome de uma localidade espanhola e a ser desenvolvido pela marca espanhola sem intervenção italiana. Apesar de apresentar estilo diferente do Fiat Ritmo, a marca italiana acusou a sua congénere espanhola de plágio num caso que apenas foi resolvido nos tribunais (em Paris) e com um triunfo para a SEAT.
Para comprovar que o Ronda era suficientemente distinto do Ritmo, a marca catalã concebeu uma unidade em que todas as peças a amarelo representavam áreas diferentes face ao modelo da marca italiana. O interior, por exemplo, também contava com uma enormíssima área amarela, o que ajudou a fazer pender a balança para o lado da SEAT.
Na verdade o Ronda não foi um grande sucesso para a SEAT, mas foi o primeiro automóvel que foi exportado para o exterior com uma rede de concessionários independente por parte desta marca, além de estrear um novo logótipo. Hoje, cerca de 82% da produção total da SEAT em Martorell é enviada para o mercado internacional.
De Ibiza para o mundo
Antes de entrarmos no ‘capítulo Ibiza’, Isidre López abre uma passagem no corredor para uma sala contígua onde se encontram diversos automóveis em lista de espera para posterior recuperação, dentre eles um 1400 B Coupé Serra de 1958, desenhado por Pedro Serra, que ganhou notoriedade como designer da Pegasus, outra marca espanhola que teve os seus dias de glória.
Com os Ibiza, a marca entra, decididamente, num novo patamar da sua história. Inteiramente pensado pela SEAT, é visto também como uma pedrada no charco pela irreverência e acessibilidade, sendo o segundo modelo a ser lançado com referência a uma localidade espanhola. A primeira geração, em 1984, caracterizou-se por contar com a ajuda de alguns nomes sonantes na indústria automóvel, como a Karmann ou a Porsche, neste caso para os motores.
Na coleção da SEAT, o destaque vai para uma versão Ibiza SXI que pertenceu ao Rei Felipe VI e que transformada em 1986 com diversos elementos especiais, como a cor dourada ou as cavas das rodas traseiras alargadas. Prenda para o futuro rei quando atingiu a maioridade, este Ibiza (com o cognome ‘Rey’) avançava as especificações técnicas do Ibiza SXI que entraria em produção dois anos depois: motor de injeção de 100 CV, sistema de travagem duplo em X com discos ventilados, além de um volante especial, bancos Recaro e ar condicionado. Foi o mais exclusivo dos mais de um milhão de Ibiza de primeira geração.
Ainda no que diz respeito a exemplares do Ibiza, a ‘Nave-A122’ conta ainda uma unidade muito peculiar em formato Cabrio, também de primeira geração, que não passou de um protótipo 2+2. O desenho foi concebido pelo estúdio ItalDesign, de Giorgio Giugiaro, responsável pelo desenho do Ibiza.
Hoje, como é sabido, o utilitário vai já na sua quinta geração, prevendo-se no segundo trimestre o lançamento de uma edição especial com detalhes específicos como a cor ou as jantes.
A era do grande grupo
A aquisição por parte do Grupo Volkswagen é outro marco na História da SEAT, que passa a ter acesso a uma enorme base de componentes e conceitos para o desenvolvimento dos seus futuros automóveis. O primeiro a ser lançado com base num desenvolvimento partilhado com a Volkswagen foi o Toledo, desenhado por Giugiaro e que tinha como irmão o Volkswagen Vento.
Na coleção de Martorell, está também uma variante criada para os Jogos Olímpicos de Barcelona, realizados em 1992, a qual recebeu o nome Podium e que tinha alguns equipamentos especiais, como pintura de dois tons, fax, telefone fixo entre os bancos e bancos em pele de tonalidade creem, sendo oferecidos aos atletas espanhóis medalhados – produziram-se 25 unidades, sendo que 22 foram entregues, efetivamente, aos medalhados.
Também para o mesmo evento, a SEAT desenvolveu aquele que seria um projeto especial e muito à frente do seu tempo – um Toledo elétrico, ‘amarrado’ pelos próprios constrangimentos do seu tempo: as suas baterias de chumbo pesavam 500 quilos e o motor de 22 CV tinha de ‘carregar’ os necessários 1800 kg de peso total, sendo que, para merecer homologação como automóvel, este Toledo tinha de chegar aos 100 km/h. Segundo Isidre López, foi “necessário algum esforço, não foi fácil”. No entanto, o mais importante era a sua autonomia de 55 quilómetros em ciclo urbano, suficiente para que ‘abrisse’ caminho para os atletas olímpicos na prova de maratona.
Ainda assim, uma vez que se fala de veículos elétricos, houve um outro elétrico produzido logo no ano a seguir, neste caso um Ibiza experimental, do qual não se fez nenhum exemplar de produção. Tanto o Ibiza, como o Toledo elétricos apenas têm uma unidade de cada.
Depois, há toda uma fileira de veículos meramente conceptuais, criados para os diversos salões automóveis em que a marca participou, nalguns casos com respetivas versões de produção (como os Salsa e Tango, que adiantaram as versões de produção do Leon), noutros casos apenas como exercícios criativos, como os Ibiza Cupster, de 2014, com uma viseira em vez de para-brisas, Tribu, Bolero e Formula. Outro modelo conceptual foi o Ibiza Vaillant, criado para homenagear o herói de banda desenhada que apaixonou gerações, revelado em 2006 ao abrigo de uma parceria entre as duas entidades (SEAT e Vaillant).
No lado desportivo, as principais conquistas estão representadas, desde o histórico Ibiza Kit-Car com que a marca foi campeã das duas rodas motrizes no Mundial de Ralis, passando pelos Ibiza TDI com que a marca venceu diversas provas do Campeonato de Turismos (WTCC) na década de 2000, então também com o português Tiago Monteiro na sua formação.
Também nos ralis, destaque para o Ibiza “bimotor”, de 1986, criado pelo piloto José María Serviá. Esta versão contava com dois motores, um em cada eixo, cada um com a sua própria caixa de velocidades. Chamaram-lhe 1.5×1.5 (pela cilindrada dos seus motores), e chegou a ter quase 300 CV. Também neste espaço está um Panda 45 muito especial, já que pertenceu a um ‘certo piloto’ chamado Carlos Sainz…
A capacidade da reinvenção por um bem maior
Mas na coleção da SEAT há também espaço para um dispositivo muito especial que tem pouco que ver com os automóveis em si, mas para o qual a indústria automóvel também acabou por dar um contributo muito especial – um ventilador com que se pretendeu atender às dificuldades causadas pela pandemia de Covid-19 que ‘varreu’ o mundo. Com as inúmeras dificuldades dos centros hospitalares para se encontrarem ventiladores que ajudassem os mais doentes a respirar, algumas marcas automóveis orientaram os seus esforços para o desenvolvimento de sistemas de assistência à respiração.
O desenvolvimento deste dispositivo teve em conta as necessidades do pessoal médico, envolvendo mais de 150 funcionários de diversas áreas. Os componentes do sistema revelam a capacidade de adaptação e de invenção – os motores das escovas de limpa para-brisas foram utilizadas no ventilador, o qual foi produzido na linha de montagem adaptada do Leon.
Hoje, a sua presença naquele espaço também recorda um momento dramático para a civilização contemporânea e a excelência da capacidade de adaptação.
Com tantos ‘tesouros’ automóveis inseridos numa simples nave, por que não criar, então, um museu aberto ao público? “Nós estamos no meio de um local de produção e de montagem de automóveis. Não nos podemos esquecer disso. Há componentes e peças que são secretas a circular em camiões e não podemos deixar que sejam vistos por qualquer um com uma câmara fotográfica”, responde Isidre López.
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