A exclusividade da obscuridade: Cinco raros desportivos britânicos dos anos 60 e 70 (Parte I)

11/02/2023

O final da década de 50 e início de 60 definiu-se como um período de crescimento para a economia britânica. A melhoria das condições de vida permitiram lançar as sementes de uma revolução cultural, alimentada pela população jovem que, pela primeira vez (no pós-Guerra), possuía meios económicos que deixavam de ser quase inteiramente absorvidos por necessidades básicas, sobrando fundos para aplicar em música, arte, divertimento e até em automóveis. No início dos anos 60, a maioria das famílias não possuía automóvel; mas, no final da década, cerca de 60% dos lares no Reino Unido já se convertera à conveniência das quatro rodas. Aliás, a condição do automóvel cessa de se enquadrar apenas no meramente utilitário, abrindo a porta ao ressurgimento dos automóveis desportivos.

Entre meados de 60 e inícios de 70, uma série de pequenos fabricantes tomam partido do apetite britânico por modelos dessa natureza, recorrendo às facilidades na construção de carroçarias, providenciadas pelo uso da fibra de vidro, material que impulsiona uma verdadeira democratização do que se constituía, até a este ponto, como um processo lento e altamente dispendioso. Estas novas companhias recorriam igualmente a elementos fabricados por empresas maiores pré-estabelecidas no ramo, eliminando as grandes demoras e custos associados a R&D; qualquer rápida consulta a uma listagem deste tipo de fabricante encontra sucessivas referências, por exemplo, ao uso de chassis Triumph, de motores V6 Essex da Ford, e de uma multiplicidade de peças da gigante British Leyland (BLMC). Até as universalmente bem-amadas jantes de magnésio de slots da Wolfrace equipam, a algum ponto durante a década de 70, a maioria dos modelos destas companhias.

O período áureo dos pequenos fabricantes com os seus respetivos automóves mais ou menos exclusivos, ancorados em maior ou menor medida no formato de kit car e total ou parcialmente consideráveis como parts bin specials, foi de pouca duração. O final dos anos 60 assinalou, também, o fim da prosperidade económica, com a situação a piorar a partir de 1967 e com o início da década de 70 a constituir um dos mais desafiantes períodos da história britânica contemporânea, marcado por incessantes disputas laborais (algumas das mais marcantes a ocorrerem no próprio setor automóvel, ajudando em grande medida na queda da BLMC), inflação descontrolada e desemprego em massa, conjuntura à qual se aliaram todos os efeitos nefastos da crise petrolífera de 1973.

Diversos modelos automóveis deste período acabaram por cair no esquecimento colectivo, especialmente os de produção muito limitada. Ao longo deste artigo composto por cinco partes, focamos atenção em alguns dos mais incomuns, interessantes e obscuros desportivos e grand tourers oriundos dos pequenos fabricantes britânicos, apontando falhas e méritos e sublinhando a relevância e o papel desempenhado por cada modelo na história e cultura automóvel.

AC 3000ME

Novo aspeto, novo material, novo tipo de automóvel. O 3000ME definiu-se como uma mudança significativa no percurso da AC como companhia; no passado, ficaram os lendários Ace e os ultra-exclusivos Frua para dar lugar a um modelo de preço mais acessível e, supostamente, de mais fácil produção. A aposta da AC no seu próprio futuro estreou-se no London Motorshow de 1973, mas a comercialização do 3000ME só viria a ter início em 1979. O percurso não foi fácil e os resultados não foram os esperados.

O automóvel era baseado num concept chamado “Diablo”, construído em 1972 pela Bohanna Stables, a companhia de Peter Bohanna (engenheiro automóvel que trabalhara com a Lola na conceção do T70 e com a Ford no desenvolvimento do GT40) e Robin Stables (mecânico veterano de automóveis de competição e agente da Lotus, o qual trabalhou igualmente para a Lola, onde viria aliás a conhecer Bohanna). Motivados pela ideia de utilizar o Diablo como base para um automóvel de produção, os sócios procuraram apoio para o projecto, tanto por parte da TVR, como da AC. No decorrer do processo, Bohanna e Stables travaram conhecimento com Keith Judd, director de vendas na fábrica da AC, em Thames Ditton (Surrey). Judd tornar-se-ia um acérrimo defensor do projecto, tendo mesmo conduzido o Diablo até à sede da companhia, com a missão de persuadir o Presidente, William Derek Hurlock, a aceitar que o desenvolvimento de uma variante de produção daquele protótipo fosse levado a cabo pela AC. O objectivo foi cumprido.

Esta não seria a primeira vez que a AC tomava um design pré-existente, adaptando-o às suas necessidades para produção. O próprio Ace, futura base dos icónicos AC e Shelby Cobra, constituiu uma evolução do Tojeiro Bristol Special, o qual era, em si, uma reinterpretação do Ferrari Barchetta; recorde-se que o Bristol Special foi uma criação do luso-descendente e revolucionário engenheiro e designer de automóveis de competição John Tojeiro, bem conhecido pela sua frutífera parceria com a Ecurie Ecosse.

Para a produção do automóvel que viria a designar-se 3000ME, o chassis tubular do Diablo foi substituído por um layout mais convencional, com subquadros dianteiro e traseiro, embora tenha mantido a carroçaria em fibra de vidro, a qual permaneceu muito semelhante à do concept. O Diablo e subsequentemente o 3000ME, exibiam um estilo verdadeiramente à frente do seu tempo. Com claras influências do Fiat X1/9 da Bertone (apresentado também em 1972), o 3000ME tira partido da popular forma em “cunha”, verdadeiro cartão-de-visita do design automóvel da década de 70, mas confere-lhe um aspeto musculado muito próprio, exibindo guarda-lamas destacados e curvilíneos, quase ao estilo dos kits especiais widebody que só viriam a alcançar popularidade na década de 80, para modelos como o Porsche 928.

O humilde motor que Bohanna e Stables tinham retirado, numa sucata, a um BMLC (Austin) Maxi, para dar vida ao Diablo, foi substituído nos automóveis de produção pelo super versátil Ford V6 Essex de três litros (com “3000ME” a significar 3000cc, mid-engined) de 138 cavalos, aliado a uma caixa de cinco velocidades desenvolvida pela própria AC. A motorização Ford era capaz de propulsionar o 3000ME, dos 0 aos 100, em 8.5 segundos, correspondendo sensivelmente ao mesmo patamar de desempenho de um Lotus Elan Sprint ou de um Porsche 914/6.

Aquando da apresentação do automóvel em 1973, diversas encomendas terão sido efectuadas, um bom sinal para a AC, a qual estimava um preço de 3400 a 3800 libras para o novo modelo da companhia. Contudo, a situação não seria tão linear quanto a AC esperava. A adesão do Reino Unido à então CEE complicou o processo, submetendo o automóvel a novos regulamentos que não tomavam em conta os pequenos fabricantes, exigindo um investimento muito considerável por parte da companhia para elevar os padrões de segurança do 3000ME, colocando-os a par dos alcançados pelos automóveis produzidos em massa pelos grandes fabricantes. Além do mais, estes regulamentos mudavam com frequência, obrigando a AC (e outros) a responder a constantes novas exigências. Esta conjuntura desafiante levou a um fraco resultado no primeiro crash test do 3000ME, exigindo um subsequente processo de desenvolvimento adicional bastante custoso.

Aliada a estas questões, a própria instabilidade financeira e inflação galopante da década de 70, viriam a fomentar um aumento dramático do preço inicialmente previsto para o 3000ME. Quando chegou aos stands, o novo AC custava 11.302 libras, quase o triplo do preço original estimado. No ano seguinte, em 1980, o preço ascendeu às 13.300 libras, um valor que obrigava o 3000ME a competir com automóveis como o 924 Turbo, TVR Tasmin e Lotus Esprit S2. Além da necessidade de suplantar a questão do preço, potenciais clientes precisavam igualmente de ignorar os primeiros testes levados a cabo pela imprensa automóvel, os quais caraterizaram o AC como deixando bastante a desejar, com as revistas Motor, Autocar e Car magazine a expressarem preocupação especialmente com o que apelidaram de “instabilidade” da traseira do 3000ME.

Apesar das complicações na produção e das críticas ao desempenho, será justo sublinhar que os 3000ME eram automóveis confortáveis, espaçosos e bem equipados, mas não constituíram certamente o sucesso de vendas que a AC necessitava para se salvar de extremas dificuldades, as quais levaram inclusive à venda da fábrica da companhia e colapso da rede de stands/vendedores. Em 1984 a produção do 3000ME foi licenciada a uma nova empresa, a AC Scotland, com uma série de mais 30 automóveis a ser produzida na Escócia antes de novas dificuldades financeiras abaterem, também, esta segunda tentativa de revitalização do modelo. A produção do 3000ME terminou com um total de apenas 104 unidades. Planos para a construção de novos modelos equipados com o V6 Busso da Alfa Romeo foram abandonados, tendo ainda surgido dois protótipos baseados no 3000ME, por parte de uma terceira companhia, a Ecosse Signature, equipados com motores Fiat 2.0 Turbo e apresentando uma carroçaria remodelada, mas o projecto também não avançou.

19 a 21 (fontes diferem) 3000ME foram ainda, em período, modificados pela Rooster Turbos, empresa de Robin Rew, mecânico, activo piloto de hillclimbs e figura de referência no mundos dos Reliant Saber/Scimitar e Morgan 3-wheelers, produzindo (pós-instalação de turbos Garrett e IHI), 200 cavalos. A Rooster criou também pelo menos um 3000ME “twin turbo” de 300 cavalos. Além da potência acrescida, a companhia de Robin Rew modificou também a geometria da suspensão traseira destes 19 a 21 automóveis, conferindo-lhes um desempenho muito superior em curva.

Actualmente, o 3000ME é um clássico de culto, mas de valores acessíveis, com um exemplar em boas condições a exigir, no mercado inglês e de acordo com a Hagerty, o equivalente a 16.000 euros.

Créditos das imagens: Bonhams; Historics Auctioneers