A última corrida dos Renault

26/09/2023

POR RICARDO GRILO

A grande corrida entre as capitais de França e Espanha não foi a primeira prova de estrada que ocorreu na Europa. Mas ao contrário das antecessoras, esta prova de três dias e 1400 km de extensão através de estradas que raramente teriam visto algum veículo motorizado, era mesmo uma maratona radical. Ainda para mais quando em 1903 os automóveis já atingiam velocidades muito consideráveis, sem ter sistemas eficazes de suspensão ou de reabsorção da energia cinética acumulada (leia-se travagem).

De modo surpreendente, houve 315 inscritos, dos quais alinhariam à partida 275 concorrentes, divididos entre automóveis de duas classes e motos. A primeira etapa, entre Paris e Bordéus tinha 547 quilómetros, reunindo ao longo do percurso cerca de três milhões de espectadores, distribuídos por duas quase ininterruptas filas humanas que ladeavam a estrada.

O primeiro concorrente a chegar a Bordéus foi Louis Renault com o Renault t#3 que aproveitou bem a estrada limpa para fazer o percurso à impressionante velocidade média de 100 km/h.

Para se compreender o significado desta velocidade em estradas desenhadas para carroças, recordemos que em 1899 um veículo eléctrico denominado “La Jamais Contente” tinha batido o recorde do mundo de velocidade, ultrapassando pela primeira vez a barreira mágica dos 100 km/h. Agora, quatro anos depois, a média de 100 km era alcançada num percurso com mais de 500 km em estrada aberta! Mas logo em seguida, Louis Renault seria relegado para o segundo posto quando chegou à meta da etapa o Mors Dauphin de Fernand Gabriel que tinha cumprido o percurso à média de 104 km/h vencendo assim a etapa. E a corrida, como veremos adiante.

Estas velocidades inéditas tinham um preço a cobrar, que se traduziu por 10 mortos entre pilotos e espectadores, ao que se somaram ainda algumas dezenas de feridos. Tudo isto na primeira de três etapas!

Um dos mortos seria Marcel Renault, cujo Renault (que vemos nesta foto colorida) tinha o #63 que correspondia ao 63º carro a ir para a estrada. Muito rápido, Marcel vinha a ultrapassar todos os concorrentes à sua frente, aproximando-se dos primeiros carros que abriam a estrada e indiciando que estaria muito bem classificado. Mas em seguida veio a tragédia.

Quando rodava na RN 10 perto da vila de Payré (entre Poitiers e Ruffec) Marcel entrou na nuvem de poeira levantada pelo Decauville #4 de Leon Théry.

A partir daqui as versões divergem. A primeira defende que devido à poeira Marcel não pode ver a bandeira amarela que anunciava uma curva perigosa e uma passagem de nível. Desse modo, terá entrado demasiado rápido na curva, perdeu o controle do carro, enfiou duas rodas na sarjeta e colidiu em contra uma árvore.

A segunda versão, que me parece mais verosímil tendo em conta as fotos do carro após o acidente, defende que Marcel terá enfiado duas rodas na vala quando seguia na poeira do Decauville que pretendia ultrapassar, tendo capotado em seguida, ferindo mortalmente os dois ocupantes do Renault.

Certo é que o infeliz Marcel ficou estendido na terra, sendo levado mais tarde para o hospital, onde morreria 48 horas depois, sem nunca ter recuperado a consciência.

Chocado, Louis Renault nunca mais voltaria a pilotar um carro de competição.

Quanto à corrida, uma reunião de emergência do Concelho de Ministros em Paris decidiu pela paragem da prova em Bordéus, com os carros a serem encaminhados para o comboio sem serem sequer autorizados a colocar os motores em marcha. O vencedor oficioso seria o carro mais rápido da primeira etapa, o Mors-Dauphin de Fernand Gabriel, um modelo desportivo de carroçaria aerodinâmica, equipado com um motor de quatro cilindros e 11,559 cc capaz de desenvolver uns expressivos 70 HP.

Para colorir esta foto do quatomóvel de Marcel Renault baseei-me numa litografia a cores da época e no modelo idêntico que se encontra no museu da Renault. Há alguns anos, a Brumm editou a miniatura deste carro à escala 1/43 mas pintado de negro. Opção essa que me parece totalmente desprovida de sentido.

Imagem colorida por Ricardo Grilo