Lixo da cidade do Porto vai ser utilizado como combustivel para aviões

10/05/2024

Não é algo em que se pense ativamente e o os números podem ser surpreendentes: 1,4 kg de lixo por dia, é o valor médio que cada português produz, o equivalente a 507 kg por ano.

 

A reportagem da autoria da jornalista Carla Aguiar do Diário de Notícias, dá conta dos projetos em curso pelas empresas Lipor no Porto e Próxima em Cascais, que pretendem transformar resíduos orgânicos em combustível sustentável para autocarros e aviões.

Cada português produz cerca de 1,4 kg de lixo por dia, o que resulta numa pegada ambiental, acima da média europeia, de 507 kg por ano. O que os habitantes de cidades como o Porto ou Cascais talvez não saibam é que os resíduos orgânicos que todos os dias produzem e separam vão ser usados para produzir hidrogénio que servirá de combustível mais sustentável para autocarros e aviões. Esse é um projeto assumido ao DN tanto pela Lipor – a associação de municípios para a gestão sustentável de resíduos do Grande Porto – como pela Cascais Próxima, a empresa municipal para a mobilidade e ambiente de Cascais.

O objetivo é descarbonizar os transportes para cumprir as metas da neutralidade carbónica e, por outro lado, reduzir as emissões de gases com efeitos de estufa (GEE) da própria queima dos resíduos através de uma tecnologia complexa de captura de carbono. Este mercado está a dar os primeiros passos em Portugal com a publicação, em janeiro, do decreto-lei que institui o mercado voluntário do carbono. Mas há já algumas multinacionais em Portugal que assumem interesse em investir nesta área à medida que se aproxima o prazo fixado para a neutralidade carbónica, que o custo de poluir será cada vez mais alto e que existe a perspetiva de serem libertados fundos públicos para investir na mitigação das emissões de dióxido de carbono.

Na área metropolitana do Porto, a Lipor planeia canalizar os resíduos orgânicos que recolhe e incinera nos oito municípios “para produzir combustível sintético e abastecer os aviões que operam no Aeroporto Sá Carneiro”. “Queremos combinar o carbono com o hidrogénio através de eletricidade renovável para produzir combustível mais ecológico para a aviação”, disse ao DN o seu administrador delegado. Fernando Leite adiantou que a empresa tem um projeto nesse sentido com dois outros parceiros, as multinacionais Ren-Gas e a SmartEnergy, para capturar o carbono emitido na sua central de inicineração na Maia, tendo como produto final combustível sintético para a aviação, o chamado SAF (Sustainable Aviation Fuel).

 

A partir do próximo ano, a aviação está obrigada a incorporar todos os anos percentagens crescentes de SAF nos voos, rumo à meta da neutralidade carbónica em 2050. Por isso, o investimento nesta tecnologia deve ser acelerado. Já existem alguns exemplos desta conversão na Alemanha e nos países nórdicos, mas numa abordagem ainda prudente.

Até Junho, a Lipor conta ter concluídos os estudos técnicos sobre a qualidade e quantidade do gás produzido pela central da Maia para poder definir qual a tecnologia mais apropriada e estima entrar em velocidade de cruzeiro em 2030. “Até 2030 poderemos ter uma série de unidades”, estimou aquele responsável. “São projetos que precisam de grandes áreas, evolvem estudos complexos, tecnologias novas e ainda não há grande experiência. Mas já está em desenvolvimento o projeto a nível de licenciamento industrial e ambiental”, adiantou Fernando Leite. Por outro lado, “estamos a falar de projetos de tecnologia de ponta, de capital intensivo, da ordem dos 500 milhões de euros, que envolvem fundos europeus e empréstimos bancários a muito longo prazo”. Isso também ajudará a explicar o fato de ainda não existirem muitos projetos destes em Portugal. “Ao contrário dos Estados Unidos, onde há muito capital privado, aqui na Europa estamos muito dependentes dos fundos comunitários e dos Estados”, lembrou Fernando Leite.

A Lipor gere o lixo de 1 milhão de habitantes, num total de 500 mil toneladas ano, valorizando um número sempre crescente de resíduos. Mas para cumprir as metas de reciclagem é preciso ir mais além. E, para isso, nomeadamente para o próprio futuro destes projetos, “é fundamental reforçar a consciencalização da sociedade da importância capital de separar os resíduos”, considerou o administrador da Lipor.

Cascais avança contra atrasos do Estado

 

Mais a sul, o município de Cascais, que é pioneiro na mobilidade sustentável, tem igualmente planos ambiciosos em curso de transformação de resíduos orgânicos em hidrogénio para abastecer a frota de autocarros de passageiros e do município. “Até ao final de 2024, Cascais terá concluída a sua unidade de produção, armazenamento e abastecimento de hidrogénio verde, com capacidade de produção diária de 389 kg de hidrogénio, garantindo o abastecimento dos 10 autocarros a pilha de combustível, bem como as restantes frotas municipais (ligeiros de passageiros e pesados RSU’s) e táxis, entre outros”, disse ao DN o vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais, Nuno Piteira Lopes.

 

Será o culminar de um projeto que tem andado mais rápido do que a legislação nacional. Nuno Piteira Lopes critica “a morosidade dos procedimentos de licenciamento que é notória”. E dá como exemplo, o facto de, apesar de a legislação que altera os requisitos referentes ao licenciamento deste tipo de instalações de produção de hidrogénio verde ser de abril de 2022, o município estar “a aguardar pelo registo de produtor de gases renováveis desde julho de 2023, um tempo de espera que não é compatível com a vontade que temos para inovar com a eficácia e eficiência que ambicionamos”. O município inovou ao lançar a primeira linha com autocarro movido a hidrogénio, em 2021, contando com quatro veículos em operação, e estando em vias de adquirir mais seis. Porque Portugal tarda em avançar com toda a legislação, a produção e distribuição de hidrogénio por privados ainda não está regulamentada, pelo que o hidrogénio é importado de Espanha. Responsáveis autárquicos têm defendido que essa falha está a ser “um entrave aos operadores que têm vontade e capacidade tecnológica para inovar na sustentabilidade”.

De um total de 136 748 toneladas, de resíduos urbanos recolhidos em 2023 em Cascais, a taxa de separação foi de 37%, com a dos biorresíduos a crescer 34% face ao período homólogo e aqueles recolhidos em saco ótico a atingirem em 2023 as 2 mil toneladas, mais 450%, indicou a autarquia. O município tem uma meia dúzia de projetos em curso que envolvem as energias renováveis e a reduçao de emissões, mas o programa veterano é o Oxigénio, “que tem trazido para a área protegida a plantação de espécies autoctónes através de empresas e privados que investem na criação de zonas sem infestantes e com mais árvores benéficas para biodiversidade e com um reflexo importante no sequestro de carbono”. Igualmente, “a plantação de mais árvores em zonas urbanas e mais espaços verdes em zonas construídas, já sequestram 408,7 toneladas de CO2 por ano”, indica a autarquia.

 

Investidores interessados

 

As grandes inciativas de captura de carbono industrial estão a ser feitas em países como Canadá, Estados Unidos, Noruega e Austrália. Em Portugal, dois dos projetos de maior dimensão nesta área são da empresa luso-holandesa Madoqua, um em Pataias, na zona centro, e outro em Sines. O primeiro, Madoqua Synfuels, capta o CO2 e mistura-o com hidrogénio verde para produzir metanol renovável (e-metanol). “É um projeto de grande impacto, com capacidade para produzir 320 mil toneladas anuais”, disse ao DN Brar Momme Rickmers, gestor do projeto. Em Sines, o MadoquaPower2X quer utilizar hidrogénio verde para produção de amónia verde que resulte em e-metanol a usar no transporte marítimo, mas também para utilizações na indústria química. “Já recebeu a classificação de Projeto de Potencial Interesse Nacional (PIN), avançámos para a fase de engenharia preliminar e esperamos iniciar as operações até final de 2029” acrescentou aquele responsável.

A Veolia é outra empresa, multinacional, que também está presente em Portugal, com soluções diversificadas de descarbonização e a estudar a captura de carbono. A empresa opera mais de 50 centrais de valorização energética de resíduos na Europa e tem uma de captura de carbono na Índia. “A energia produzida a partir de resíduos, quando comparada com a energia produzida a partir de combustíveis fósseis, tem uma pegada carbónica bastante mais reduzida, dando já, por si só, um importante contributo para a descarbonização. Mas um processo de incineração de resíduos também emite CO2. Assim, através de uma solução de CCUS (captura e armazenamento de carbono) estaremos a compensar essas emissões que não conseguimos evitar e por essa via a tornar a instalação neutra ou mesmo negativa, no seu balanço global”, refere fonte oficial da empresa .

Mas, “para a sustentabilidade desta solução é fundamental garantir uma cadeia de valor completa, desde a captura até ao armazenamento ou utilização, incluindo oleodutos de transporte ou terminal de liquefação”, lembra a mesma fonte. Por outro lado, e “tendo em conta que os valores associados a estes projetos são elevados, é fundamental encontrar destinos de valorização do CO2 capturado , como é o caso da produção de SAF”. É um setor que ainda carece de regulamentação clara, concordam os operadores deste mercado.

Parlamento Europeu quer reforçar a captura de carbono para travar aquecimento global

O Parlamento Europeu acaba de aprovar uma resolução que defende uma maior aposta nas soluções de sequestro de carbono para atingir a meta da neutralidade carbónica e travar o aquecimento global. “A remoção de carbono através das florestas, da agricultura e de soluções tecnológicas pode desempenhar um papel cada vez maior para que a UE se torne neutra em carbono até 2050, uma vez que cada tonelada de CO2 emitida para a atmosfera terá de ser neutralizada por uma tonelada de CO2 removida da atmosfera”, pode ler-se na resolução.

Propõe-se um quadro de monitorização, comunicação e verificação e defende-se que os dados verificados de emissões e capturas das explorações agrícolas, por exemplo, devem estar disponíveis muito antes de 2026.

Os eurodeputados reconhecem que estas soluções têm potencial para limitar as alterações climáticas, mas sublinham que “a UE deve sempre dar prioridade a reduções de emissões rápidas e previsíveis”. Alertam também a UE contra a dependência excessiva de futuras remoções de CO2 para se tornar neutra em termos climáticos e alcançar emissões líquidas negativas após 2050.

A legislação que institui o mercado voluntário de carbono em Portugal só foi publicada em janeiro deste ano. Há um ano, em março de 2023, o então ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, afirmava que queria que Portugal se adiantasse neste setor e definiu como prioridade a reflorestação, assumindo o objetivo de atrair investimentos que impactem pelo menos 500 mil hectares de florestas. O diploma define as regras de funcionamento deste mercado e atribui à Adene – Agência para a Energia a competência de desenvolver a plataforma eletrónica para o registo de projetos e de créditos de carbono, entre outras.

Questionada pelo DN sobre o número de projetos e créditos registados até ao momento, a Adene respondeu que tendo em conta a lei ter sido publicada há apenas três meses, “o mercado voluntário de carbono encontra-se atualmente ainda numa fase de desenvolvimento e operacionalização”, sendo ainda “ necessário consolidar o quadro legal que permitirá a sua plena operacionalização”. Essa é a razão apontada para ainda não existirem projetos registados, “embora se verifique um elevado interesse na sociedade, sobretudo por projetos na área florestal, os quais podem contribuir para aumentar a capacidade de sequestro de carbono”. Após uma primeira fase de “montagem” do sistema, a Adene estima que possam começar a aparecer os primeiros projetos em meados do próximo ano. No que diz respeito à plataforma de registo, “aguarda-se a definição dos requisitos gerais da plataforma, os quais devem constar de portaria”, indicou a agência.