Começou como um rumor ligado a uma eventual venda de todo o material utilizado em Baku, no Azerbaijão, para construir a pista de Fórmula 1 na capital asiática, tomou proporções maiores quando alguns promotores americanos se mexeram e acabou por ser confirmado quando a cidade de Miami se candidatou a ter uma prova de Fórmula 1 nas ruas da cidade.

A ideia de um GP de Miami foi acolhida com grande entusiasmo por Sean Bratches, responsável pelo marketing da F1, e por Chase Carey, CEO da F1. Tanto que se percebeu que Miami iria receber uma atenção especial da Liberty Media. Não há, ainda, pormenores, mas olhando para o documento de candidatura de Miami, fica evidente que está a ser desenhado um modelo comercial atípico para que a corrida de Miami possa ser uma realidade. A questão que se coloca é: que modelo comercial está a ser pensado?

Segundo algumas fontes que já tiveram eco em vários órgãos de comunicação social, a ideia é não cobrar a taxa de inscrição, sendo o retorno do investimento assegurado numa operação de risco partilhado entre a Liberty Media, o multimilionário Stephen M. Ross (promotor do GP de Miami) e, acredita-se, a cidade de Miami. Ou seja, o espetáculo seria pago e recolheria eventual lucro com as receitas das bilheteiras e das zonas VIP, sendo que a ênfase será muito nesta última.

Como a Fórmula 1 está diferente! Bernie Ecclestone nunca ficou refém da receita de bilheteira e dos VIP, optando, sempre, pela taxa de inscrição com valores mais que suficientes para pagar as despesas, todas, e ainda assegurar um lucro muito saudável que poderia crescer mais caso a bilheteira e os VIP corressem muito bem. Ao longo dos anos, o britânico foi refinando a arte de convencer os promotores a engajarem os governos regionais e centrais ou investidores privados, a pagar-lhe principescamente por um espetáculo que se foi esvaziando ao mesmo ritmo que Ecclestone ficava cada vez mais ganancioso, acordando contratos plurianuais que o defenderam durante muitos e bons anos.

Porém, sabia que o GP do Mónaco nunca pagou um cêntimo de euro de taxa de inscrição ou pela promoção? É a única prova que nunca pagou nada, pois é um Grande Prémio com tamanha importância que nas contas de Bernie Ecclestone era tratado como um investimento e não um proveito. Mesmo que, sobretudo, as áreas VIP fossem agradavelmente lucrativas. Mas, contas feitas, dificilmente um GP do Mónaco terá dado lucro.

Porém, conhecendo o amor de Bernie Ecclestone ao vil metal, alguém acredita que esta situação aconteça e ele perdesse dinheiro?! Claro que não.

Para um calendário de 20 corridas, o britânico sabia que teria de fazer contas a 19 provas que pagavam, em média, 30 milhões de dólares, ou seja, a temporada em termos de inscrições dos locais das provas geraria 570 milhões de dólares. E como os acordos com os promotores eram de longa duração, Ecclestone sabia, com relativa segurança, quais as receitas num prazo mínimo de três anos, tendo sempre, na manga, uma outra organização disponível para ocupar uma vaga, sempre por valores mais elevados. Como os proveitos da transmissão televisiva e dos patrocinadores também estavam assegurados por períodos longos, Bernie Ecclestone sabia o que iria render a Fórmula 1 num prazo de dois a três anos á frente. Aliás, tem sido isso que tem evitado que o prejuízo da Liberty Media se destaque mais, pois muitos contratos feitos debaixo do “modus operandi” de Ecclestone ainda estão em vigor.

Por outro lado, as equipas de Fórmula 1 também poderiam antever, com alguma segurança, qual a sua parte nos lucros da competição nos anos seguintes, permitindo desenhar orçamentos de forma serôdia. Até porque os proveitos das equipas nunca diminuíram, antes pelo contrário… Até á chegada da Liberty Media!

No final da primeira temporada debaixo do controlo da empresa norte americana, os custos de reestruturação, a aposta nas redes sociais e na divulgação, a nova sede em Londres, a contratação de pessoal, enfim, tudo e mais alguma coisa, fizeram, pela primeira vez, os lucros descerem e os valores pagos ás equipas diminuírem. O F1 Live em Londres e o fim dos contratos de patrocínio com a USB e a Allianz, contribuíram para este esmorecer dos lucros. Mas houve outro contributo.

No relatório e contas de 2017, lê-se que “a receita derivada da promoção de eventos diminuiu no quarto trimestre. Primariamente, devido a questões legais ligadas ao contrato de um evento que, pela primeira vez, viu diminuir o valor pago pela organização de uma prova. Situação que se registou em 2017 e será assim até ao final da vigência do contrato em 2020.” De forma sibilina, o relatório diz “este acordo foi herdado da anterior gestão e é perfeitamente atípico e não reflete a prática comum nos contratos feitos pela anterior gestão.” Qual foi esse evento?

O Grande Prémio do Brasil tinha um acordo com Bernie Ecclestone que permitia que os organizadores completassem o valor total da taxa de inscrição com verbas pagas pela TV Globo. Curiosamente, esse contrato com a TV Globo terminou em 2016 e perante o vazio legal a Liberty Media teve de aceitar a diminuição de receita pois os brasileiros disseram, logo, que o que pagavam era aquele valor e não tinham nada a ver com os acordos com a Globo.

Qual a leitura que se pode fazer destas referencias da Liberty no relatório e contas? Primeiro que Ecclestone deixou algumas cascas de banana pelo caminho e armadilhou alguns contratos que vão, agora, doer nos bolsos da companhia americana. Depois, que as receitas das taxas de inscrição dos promotores das provas são, realmente, muito importantes no equilíbrio das contas da Fórmula 1.
Ora, se o Mónaco não paga taxa de inscrição e os promotores do GP da Alemanha pediram para reduzir o valor pago à Liberty Media para organizar as provas, como é que esta ideia de não cobrar o valor de inscrição a Miami vai afetar o precário equilíbrio das receitas versus lucros da proprietária da Fórmula 1?

A matemática e eu nunca nos demos bem e, além disso, há muita coisa que desconheço e a maioria desconhece. Porém, podemos fazer um exercício de adivinhação para perceber em que terreno a Liberty se está a mover. Certeza é que a Liberty quer, mesmo, um GP de Miami e aceita partilhar o risco de gerar receitas suficientes com a bilheteira e com as zonas VIP.

Claro que tudo isto faz sentido se a Liberty se estiver a preparar para alargar o calendário do Mundial de Fórmula 1 para 22 provas ou mais. Se assim for, caso a partilha de risco corra bem e ofereça um lucro de 5 ou 10 milhões de dólares (muito abaixo da média de 30 milhões por GP) a prova de Miami será encarada como um bónus – afinal são 5 ou 10 milhões a juntarem-se ao restante bolo de 600 milhões de dólares. Porém, se a detentora da Fórmula 1 não conseguir alargar o calendário e a prova de Miami for substituir uma prova lucrativa, a corrida americana passa a ser uma dor de cabeça e um belo rombo nas receitas. Ou seja, Chase Carey e Sean Bratches estão a mover-se em areias movediças que podem engoli-los a todo o momento!

Naturalmente que não estou a ver homens tão experientes na área dos negócios e do marketing cometerem um erro desse tamanho que os coloquem numa situação de não retorno.

Na minha opinião, o GP de Miami será de borla porque a Liberty Media está a olhar para lá da árvore. Não estão a olhar para a árvore das patacas, mas para o futuro e para o ariete de marketing que esta prova pode ser. Nomeadamente nos Estados Unidos, onde as audiências da F1 ainda estão longe do esperado, mas que é considerado pela Liberty como o mercado mais importante. Ou seja, a lógica será a mesma para o Mónaco não pagar taxa, ou seja, a sua importância justifica a “borla”.

Porém, Miami não é o Mónaco e a prova no principado é única e globalmente conhecida, tanto que faz parte da famosa “Triple Crown” (Mónaco, Indy 500 e 24 Horas de Le Mans) e tem quase 90 anos de história. Só o desejo de ter uma ferramenta de marketing nos Estados Unidos para seduzir patrocinadores e audiência televisiva, não chega para justificar esta “borla”.
O problema é que a Liberty pode ter aberto uma caixa de Pandora que, claramente, ameaça a estrutura de proveitos da Fórmula 1. E a propósito disso, vamos aqui desenhar alguns cenários.

Imagine o caro leitor que é um dos promotores que tem o acordo com um dos novos países que quer entrar na F1. E não há muitas surpresas, pois sabe-se que as cidades de Copenhaga (Dinamarca), Hanói (Vietname) e Buenos Aires (Argentina) estão interessadas. Se ouvisse que há provas de borla e outras que vêm a sua taxa diminuir a cada ano, não iria tentar negociar um acordo mais vantajoso?! E as organizações que têm contratos a expirar brevemente, não iriam tentar renegociar a extensão do contrato em condições bem mais agradáveis?

Agora imaginem as organizações que mais pagam à Liberty Media – Azerbaijão, Bahrain e AbuDhabi – o que vão pensar? É verdade que os governos desses países passam o cheque sabendo que o Grande Prémio será, sempre deficitário, mas que isso será amortizado no orçamento dedicado à promoção turística do país. Mas mesmo esses governos têm limites e a partir de certa altura deixa de fazer sentido, economicamente e politicamente, estar a pagar fortunas para acolher a Fórmula 1. E, certamente, não querem que a Liberty os encare como “porquinhos mealheiros” na hora de negociar contratos, dando-os como certos e capazes de pagar um pouco mais para acomodar as borlas ao Mónaco e a Miami.

Além disso, há organizações que são subsidiadas por institutos públicos, fundações privadas ou outras que são profundamente escrutinadas publicamente. Falo de Melbourne, Montreal e, sobretudo, Austin. O GP dos EUA tem a sua taxa de inscrição paga pelo Texas State Major Events Trust Fund, algo que tem sido profundamente discutido no estado norte americano onde está sediado o Circuito das Américas, pelo elevado valor gasto para ter a F1 no Texas. Agora, imaginem o que acontecerá assim que souberem que Miami tem um acordo para fazer o seu GP de borla!

Depois, há os promotores independentes como o de Silverstone e de Hockenheim. O primeiro está a negociar o contrato para lá de 2020 e o segundo está no final de um acordo estranho que fez o GP da Alemanha alternar entre Hockenheim e Nurburgring. Isto porque as duas pistas não queriam assumir o risco de ter prejuízo todos os anos e, assim, dividiram os custos e só registam números no vermelho a cada dois anos. E sem problemas nenhuns, o promotor de Hockenheim assumiu que em 2017 não houve GP da Alemanha porque não havia dinheiro e já este ano veio, publicamente, dizer que ou a Liberty baixa as taxas de realização das provas ou a Alemanha volta a sair do calendário da Fórmula 1.

A verdade é que o negócio dos circuitos não são só as corridas e num autódromo há a necessidade de rentabilizar a estrutura com eventos, provas e testes. A maioria dos que existem pelo mundo não recebem apoios estatais ou de outra fonte e, por isso, o negócio tem de fazer sentido. Pagar 30 milhões de dólares para acolher a Fórmula 1 arrasa qualquer equilíbrio financeiro se a bilheteira, a publicidade e as áreas VIP não pagarem os custos.

É verdade que a Liberty, pela voz de Chase Carey, deseja proteger as provas tradicionais do Mundial de Fórmula 1, mas há coisas que são estranhas. Sean Bratches não chegou a acordo, ainda, para que haja um GP da Alemanha a partir de 2019 seja em Hockenheim, seja no Nurburgring. Porém, Chase Carey, levado pela mão por Sean Bratches, já visitou Berlim, a cidade que já organizou uma prova da Fórmula E e parece que tem vontade de organizar um Grande Prémio. Curiosamente, Sean Bratches nasceu, precisamente, em Berlim… E algumas fontes dizem que Berlin quer o mesmo tipo de negócio de Miami!

Veremos o que o futuro nos reserva, mas será, certamente, interessante saber o que vai sair das negociações com diversas organizações e quando é que, abertamente ou por baixo da mesa, todos vão querer um negócio de risco partilhado com a Liberty Media. Sabendo-se que a maioria é deficitária, se for este o padrão seguido por todos, os pagamentos às equipas deixam de estar garantidos e o negócio da Fórmula 1 pode deixar de ser altamente rentável.

José Manuel Costa