O Brasil no seu melhor

06/05/2019

Setembro de 2001. Os atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque tinham acontecido há meia dúzia de dias e em consequência dessa tragédia havia uma enorme tensão no ar. Literalmente.

Ninguém ia voar tranquilo, pois pouco ou nada se sabia sobre as motivações e estratégias dos militantes islâmicos. Receava-se que mais coisas do género pudessem acontecer em qualquer parte do mundo mas independentemente disso já era mais que garantido que depois daquela data fatídica muita coisa iria mudar na aviação, seguramente para pior.

A história que vou contar aconteceu uma semana depois dos atentados, mais coisa menos coisa. Voava de Lisboa para S. Paulo aos comandos de um Airbus A340 completamente cheio, como era habitual nessa linha. Perto de 300 pessoas a meu cargo entre passageiros e tripulantes. Barra pesada, naqueles dias difíceis.

A tensão a bordo era notória mas todos procuravam resignar-se e manter a calma sabendo que entre Lisboa e S. Paulo tínhamos perto de 10 horas para lidar com toda a espécie de emoções e que o tempo iria custar a passar.

O voo decorreu sem incidentes durante mais de seis horas, ou seja, quase toda a travessia do Atlântico, e começávamos a aproximar-nos do Nordeste Brasileiro por alturas de Fortaleza. Foi então que o Supervisor de Cabina entrou pelo cockpit dentro com ar assustado e disse:
“Comandante, temos um problema. Há dois passageiros estrangeiros que estão a distribuir pancada por toda a gente na zona da classe económica. A situação está fora de controle e já há feridos.”

Não precisei de ouvir mais nada. Mandei colocar dois comissários à porta do cockpit com ordens rigorosas para não deixarem entrar ninguém, pois ao tempo aquela porta até uma criança conseguiria arrombar. Entretanto dei conta ao Controle de Tráfego Aéreo de que algo de anormal se passava a bordo e pedi para aterrar em Fortaleza, o que foi imediatamente autorizado.

Durante a descida um dos comissários entrou no cockpit com a camisa coberta de sangue para me anunciar que os passageiros se tinham organizado e conseguiram imobilizar os autores dos desacatos amarrando-os com os cintos das calças. Dias depois do 11 de Setembro o espectáculo não podia ser mais deprimente e toda a gente a bordo já só ansiava por terra firme para aliviar os medos.

Depois da aterragem apareceu no avião uma brigada da Polícia Federal que logo tratou de levar os dois agressores para interrogatório. Entretanto os restantes passageiros e tripulantes recuperavam o fôlego enquanto aguardávamos autorização para seguir viagem para S. Paulo.
Cerca de meia hora depois da detenção o chefe da polícia voltou ao Airbus e disse-me qualquer coisa como isto:

“Comandante, temos um problema (mais um, pensei eu…). Já identificámos os indivíduos. São dois holandeses residentes em S. Paulo, que falam e entendem razoavelmente o português. Disseram que são toxicodependentes e como não os deixaram fumar nem beber a bordo entraram numa crise de ansiedade que os tornou violentos.”

“E qual é o problema, delegado?”, perguntei.

“O problema é que eu não posso reter os dois holandeses sem uma denúncia formal e para isso preciso de testemunhas. Terei que ouvir todos os passageiros do avião.”

“Entendi. Isso pode levar uma horas, não?”

“Umas horas? Uns dias, Comandante. São trezentas pessoas.”

“Mas que quer então que faça, delegado? Quer que eu continue viagem com os agressores a bordo? É que ainda temos quase quatro horas de voo pela frente; os meus passageiros nunca aceitariam tal coisa.”

“Deixe-me pensar”, respondeu.

O delegado da Polícia Federal pensou e repensou e passados uns bons dez minutos veio ao meu encontro:

“Comandante, já sei. Eu volto para o gabinete e faço mais umas perguntas aos “caras”. Enquanto isso você fecha as portas do avião e vai para a pista. Quando descolar (os brasileiros dizem “decolar”) eu venho à janela e grito: P*** que pariu, o português fugiu!!!”

E assim foi. Seis horas mais tarde os dois holandeses foram colocados num voo doméstico para S. Paulo, já nós estávamos no hotel a descomprimir com uma mais que merecida caipirinha.

Viva o Brasil!

Por José Correia Guedes