A política foi mais forte que o desporto! Na véspera do maior rali do mundo sair para a estrada, a desilusão tomava conta da caravana. Pela primeira vez em 30 anos, o Dakar era cancelado. ‘Razões de Estado’ invocadas pelo Governo francês levaram a Amaury Sport Organization a suspender a corrida em nome da segurança. “Foi uma vitória do terrorismo”, lamentou, na altura, Etienne Lavigne, “mas o cancelamento impunha-se”. Dez anos depois, estamos prestes a partir para a 10ª Edição do Dakar sul-americano.
Ao longo de 30 anos, o Dakar tinha conseguido sobreviver a tudo. À morte do seu criador, aos trágicos acidentes envolvendo concorrentes, às pistas do Níger e da Argélia, ao deserto do Ténéré, às minas que explodiam em Marrocos, às guerrilhas armadas e ao banditismo, aos conflitos regionais nos países limítrofes, às pressões ambientalistas, à supressão de etapas, às mudanças de percurso, até mesmo a uma gigantesca ponte aérea que parou o rali durante cinco dias. A tudo o Dakar tinha resistido. Às vezes tremendo, é certo, mas nunca se vergando. Desta vez, porém, o terrorismo falou mais alto e o Dakar sucumbiu, pela primeira vez, à guerra do medo, deixando a nu todas as fragilidades de uma prova que, por estar demasiado exposta ao mundo, se tornou num alvo privilegiado de todas as ameaças.
A crescente mediatização do Dakar, os sucessivos recordes de presenças, a própria previsibilidade do percurso a isso ajudaram. Pior que isso, abriu-se um perigoso precedente cujas dimensões o mundo, infelizmente, foi conhecendo ao longo dos anos. Na altura, foi a primeira vez que um evento desportivo à escala global foi anulado por receio de atentados terroristas.
Houve o receio que essa anulação significasse o fim do Dakar, mas como agora sabemos, não foi isso que aconteceu, foi apenas o início de uma nova era, com a passagem da prova para um novo e mais pacífico continente.
Cadeia de incidentesNo epicentro desta inédita e drástica decisão, anunciada em conferência de imprensa extraordinária pelo próprio Etienne Lavigne, na véspera do rali sair para a estrada, esteve um alerta do Governo francês “desaconselhando fortemente” os seus cidadãos, concorrentes ao Lisboa-Dakar incluídos, a deslocarem-se à Mauritânia. O aviso fora dado pelo porta-voz do executivo de Sarkozy, Laurent Wazuqueiez, advertindo para a insegurança vivida naquele país e para o risco de ataque terrorista contra interesses franceses no Magreb, relembrando que a 24 de dezembro tinha sido assassinados quatro turistas franceses e, apenas três dias depois, num atentado contra a base de El-Ghallawija, a norte da Mauritânia, mais três militares foram executados.
Dois actos “lamentáveis, isolados e que em nada beliscam a imagem do país”, apressou-se a dizer o Governo mauritano, acrescentando que as informações difundidas pela rádio Al-Arabiya eram “notoriamente imprecisas”. Embora garantindo um reforço extraordinário à segurança de toda a caravana, as autoridades daquele país viram-se impotentes para travar o rumo da história, até porque o Governo de Paris invocou depois “razões de Estado” para parar o rali. Facto consumado.
Ameaça não era limitada
Riscando a solução de um desvio da Mauritânia e mostrando-se indisponível para organizar uma prova mais curta – entre Lisboa e Marrocos, como chegou sugerir a Lagos Sports -, a A.S.O. levantou, enfim, a ponta do véu, revelando a verdadeira dimensão do problema. “As ameaças não se limitam apenas à Mauritânia, mas a todo o rali”. Mais tarde, a Agence France Press (AFP) avançava que o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros, que sempre se recusou a comentar ou explicar as suas recomendações, estaria, afinal, na posse de uma mensagem da organização extremista Al-Qaeda, datada de 29 de dezembro, e interceptada pelos serviços secretos, com ameaças concretas à caravana, “num ataque onde seriam usados lança-mísseis”.
Recusa das seguradoras ‘ajudou’
Era, senão mesmo impossível, identificar uma só causa directa para o primeiro cancelamento da história do Dakar, já que para além da ameaça terrorista e das consequentes pressões políticas pesou também uma motivação económica. Logo que o Governo francês desaconselhou os seus cidadãos a deslocarem-se à Mauritânia, as companhias de seguros que cobriam os riscos da organização do maior rali do mundo optaram por retirar-se, deixando a A.S.O. por sua conta e risco, pois caso a prova avançasse e se verificasse algum atentado terrorista, ou qualquer outro tipo de incidente, não haveria qualquer compensação económica aos envolvidos.
Por outro lado, sabe-se que a Total – a petrolífera oficial do rali, responsável pelo fornecimento de todos o combustível em África – deu ordens aos seus colaboradores para desmobilizarem do terreno logo na madrugada de sexta-feira, portanto, muitas horas antes do anúncio oficial de Etienne Lavigne, e numa altura em que se discutiriam ainda no CCB planos alternativos ao percurso. Na altura, o Expresso avançou mesmo que terá sido o próprio Nicolas Sarkozy a ordenar a retirada da Total (empresa pública francesa), hipótese prontamente rejeitada pela petrolífera, que garantiu ter estado sempre solidária com a Organização. Fosse como fosse, o rali acabou logo que o executivo francês invocou “razões de Estado” para a não-realização da prova. “A partir daí, já nada era discutível”, lembrou Etienne Lavigne.
“Insegurança foi pretexto” acusou a Mauritânia
No entender de Ba Madine, “esta é a pior maneira de fazer face ao terrorismo. Pelo que sabemos, a Al-Qaeda reivindica as suas acções. E isso não se passou no único acontecimento isolado que despoletou todo o clima de aparente insegurança”, analisou.