Eternamente Speedy, em memória de Paulo Gonçalves

13/01/2020

08 Goncalvez Paulo (prt), Hero, Hero Motosports Team Rally, Moto, Bike, Motul, action during Stage 6 of the Dakar 2020 between Ha'il and Riyadh, 830 km - SS 478 km, in Saudi Arabia, on January 10, 2020 - Photo Francois Flamand / DPPI
A multiplicidade de formas de lidar com o falecimento de alguém incumbe-nos a fibra e imprevisibilidade que fazem de nós quem somos, mas, acima de tudo, humanos. Quiçá seja uma forma algo distante das restantes de redigir um artigo acerca de um dos pilotos portugueses de maior renome no que tocava ao todo-terreno em motociclos. Porém, parece-me sem dúvida a mais apropriada, pois ao nível da obra conquistada estava apenas o Homem.

Na manhã de 12 de Janeiro, ao despertar e ser surpreendido pela notícia numa qualquer rede social, dei por mim a compreender a relação que somos capazes de manter por quem partilha os ideais comuns e cumpre os sonhos que um dia desejamos alcançar. Pelo fascínio nutrido pela modalidade nas suas mais diversas categorias, pela compreensão da mais árdua tarefa de efectuar as provas em duas rodas, pelos inúmeros testemunhos ao longo dos anos e após o sucedido, e pelo facto de falarmos de alguém que faz com que a nossa bandeira seja erguida bem alto, o nome de Paulo Gonçalves perdeu toda e qualquer estranheza há já muitos anos, sendo esta comutada por admiração, valia e respeito.

A “obra”, antemencionada, não poderia ser de maior relevo. Com uma estreia no Dakar 2006 juntamente com Hélder Rodrigues e Rúben Faria, terminou a prova no 25º lugar à geral, em muito devido a uma queda ter deixado o seu guiador “preso por arames”. Com cinco etapas entre os dez primeiros nas treze classificativas, o piloto natural de Esposende teve uma estreia de sonho na prova-rainha do todo-terreno. A superação surgiria no Dakar 2010, no qual almejou o seu primeiro top-10 à geral. Para 2013 estava reservado o topo do mundo, sob a forma do título de Campeão do Mundo de TT. Por esta altura, Speedy era o segundo português a vencer o título (após Hélder Rodrigues, em 2011) disputado com um dos nomes incontornáveis do desporto, Marc Coma, até à última prova. Chegava aos 34 anos ao topo de uma carreira notável que incluía mais de 20 títulos nacionais espalhados por disciplinas como o Motocross, Supercross e Enduro. Já no Dakar de 2015 surge a consagração de Gonçalves como um veterano de renome, igualando o melhor resultado de um português na prova (Rúben Faria, em 2013), com um 2º lugar. Infelizmente para Speedy, a mecânica da sua Honda não foi tão resiliente como o seu espírito, o que, juntamente com uma penalização de 15 minutos, acabaria por dificultar a disputa com Marc Coma pela vitória na prova.

Mas o Homem, esse perdurará na mente de quem teve o prazer de viver os seus feitos e de sentir a sua dedicação e empenho até ao último dia. Na edição do presente ano, a primeira em que corria pela Hero, e horas antes do seu falecimento, aguardou algures no deserto a entrega de um novo motor para a sua moto por parte de uma das equipas a competir em camião, motor esse montado pelo próprio. Já com horas de atraso chegava ao final da etapa com noite cerrada, reintegrando a caravana. Ao raiar da manhã, e apesar das reduzidas horas de sono, partiu para a etapa nos moldes habituais, a que seria a sua última.

Quis o destino que o primeiro a tomar noção da situação ocorrida fosse Toby Price, vencedor em moto da edição de 2019 e na disputa pela vitória da presente edição. O australiano foi o primeiro a ter contacto com Gonçalves após o sucedido e o último a abandonar o local, numa demonstração do que representa o verdadeiro espírito da prova, o respeito pelo código do Dakar, o de nunca deixar nenhum homem para trás, o mesmo espírito demonstrado por Gonçalves em 2016 quando, ao liderar a prova, parou para auxiliar um dos candidatos à vitória, Matthias Walkner.

Na altura, Gonçalves referia que “No Dakar o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais do que qualquer vitória, sem ela não vencemos. O espírito do Dakar é isso mesmo. Passamos horas sozinhos, muitas vezes no deserto. Umas vezes ajudamos, noutras somos ajudados”. Talvez não exista melhor citação que nos faça compreender quem foi Paulo “Speedy” Gonçalves, um dos melhores motociclistas de todo-terreno portugueses de sempre mas, acima de tudo, alguém que poderemos eternamente saudar não só profissionalmente, mas também pessoalmente.

José Brito / Jornal dos Clássicos