Grupo 5: Poderá o desporto automóvel voltar a conhecer tal honestidade?

23/12/2020

Uma maioria dos entusiastas por desportos motorizados concordará que o Mundial de Ralis era o desporto automóvel mais interessante quando dominado pelos “monstros” cumpridores das regras de Grupo B, fruto da liberdade no desenvolvimento de automóveis de competição que tanto deu aos petrolheads das décadas de 70 e 80. Eram perigosos para lá do aceitável quer para pilotos, quer para espectadores, mas o enorme risco era precisamente o que atraía os fãs de desportos motorizados de todo o mundo para as etapas do Mundial de Ralis, acabando também por ditar o seu fim.

Contudo, enquanto o Grupo B assolava as etapas de Rali, os circuitos eram dominados pelos campeonatos de automóveis regidos pelas regras de Fórmula 1 e de Grupo 5. Enquanto o primeiro crescia desmesuradamente e atraía milhões de espectadores, o segundo acabou por cair num inglório esquecimento, apenas relembrado nos Revivals ou na mente dos que tomaram noção das capacidades de performance soberbas destes veículos.

Primeira Geração: A génese de uma Liga Internacional

O Grupo 5 foi criado pela FIA (há época, FISA) sendo largamente usado entre 1966 a 1982. Durante esse longo período, os regulamentos do Grupo 5 sofreriam alterações significativas em 1970, 1972 e 1976.

Introduzido como novidade no supramencionado ano de 1966, a FIA tinha como objectivo afastar algumas dificuldades financeiras e atrair mais fabricantes para as suas competições: a Fórmula 1 estava longe da popularidade actual, o WRC ainda não representava um campeonato organizado e as provas de Resistência demonstravam ser um atractivo maior sem o retorno desejado.

A Primeira Geração seria restricta a veículos de turismo altamente modificados, oficialmente conhecidos como Carros de Turismo Especiais de Grupo 5. Os regulamentos permitiam modificações para além das visadas em Grupo 1 e 2, sendo posteriormente adoptadas como pauta regente para o Campeonato Britânico de Turismos a partir de 1966 e Campeonato Europeu de Turismos a partir de 1968. Nesta categoria seriam incorporados veículos como o Abarth 1000 TC, Alfa Romeo 1600 GTA, BMW 2002 e Ford Escort Twin Cam.

Segunda Geração, uma subida de nível

A partir de 1970, com o intuito de manter um nível de competitividade elevado, a FIA aplicaria a denominação de Grupo 5 à categoria Sports Car, gerando-se a sua Segunda Geração, sendo, contudo, importante contextualizar tal decisão no esforço para reduzir as velocidades e subjacente perigosidade gerada em Le Mans e noutros circuitos rápidos pela capacidade ilimitada dos protótipos Grupo 6 como os Ford GT40 de sete litros, e também para atrair os fabricantes de motores de três litros designados à Formula 1. De acordo com estas regras, todas as equipas com intenções de participar na temporada de 1970 apenas poderiam competir se a capacidade de motor fosse menor que cinco litros e a produção maior que 25 exemplares para homologação. As mudanças não representaram um corte radical com o anterior, mas significaram a incorporação de uma categoria adicional na classe, os protótipos de Grupo 6.

Assim, os Sports Cars de Grupo 5 competiriam no Campeonato do Mundo de Marcas em 1970 e 1971, ao lado dos protótipos de Grupo 6 de três litros. Seria a partir deste ano, apenas dois após a implementação das novas regras, que a FIA ditaria nova alteração significativa às mesmas, o que impôs o final de linha para os Porsche 917 e Ferrari 512. Apesar de o regulamento pré-1970 do Grupo 5 já ter um final anunciado em 1971, grande parte dos constructores interpretou esta súbita alteração após tal avultado investimento de uma forma logicamente pejorativa.

Sem surpresa, a Ferrari abdicaria de qualquer empenho no progresso do 512 com o intuito de concentrar todos os seus esforços no desenvolvimento de um modelo que tivesse por base os regulamentos em vigor a partir de 1972, o que ditaria que inúmeros 512 acabariam por competir sob a haste de equipas privadas. Esta alteração prejudicaria tremendamente a popularidade das provas de Sports Cars, que apenas recuperariam com o advento do Grupo C. Para além do 917 (em formato K, LH e 917/20) e do 512, também o Lola T70 e o Ford GT40 Mk1 haveriam de figurar neste formato da competição.

Terceira Geração, a era dos protótipos

Com a alteração de regulamentos vigentes a partir de 1972, formava-se a Terceira Geração do Grupo 5, passando os protótipos de Grupo 6 a serem Sports Cars de Grupo 5 com limitação a três litros de capacidade, os principais concorrentes nos eventos contabilizáveis para o Campeonato Mundial de Marcas entre 1972 e 1975. Ao contrário do antigo Grupo 5, não havia requisitos mínimos de produção para homologação. Nesta geração incluir-se-iam o Ferrari 312P, o Matra-Simca MS670, o Mirage M6, o Alfa Romeo T33TT/12 e o Renault Alpine A442.

As mudanças drásticas à regulamentação aplicada entre 1972 e 1975 tiveram recepção variada. O feedback dos espectadores apontava para um desalento ao ver a série a caminhar na direcção dos protótipos e a afastar-se dos veículos com semelhanças (reduzidas) a veículos de estrada. Apesar destas alterações terem como objectivo o progresso tecnológico, as frequentes mudanças aos regulamentos e os custos astronómicos acabariam por sabotar os intentos da FIA.

Renascimento sob a forma da Quarta Geração

O Grupo 5, particularmente a partir de 1976, tornar-se-ia o novo líder do desporto motorizado que tanto fabricantes como espectadores admirariam. Mas antes de mais, como é que tal seria alcançado? A resposta era extraordinariamente simples, definindo apenas vagamente a estrutura da competição. Tudo o resto dependeria dos fabricantes, com practicamente total liberdade na modificação dos veículos para competição. Os regulamentos recentemente criados atraíram de imediato largo interesse.

A premissa primordial referia a obrigatoriedade de os veículos serem baseados em modelos de produção, mas possibilitando aos fabricantes a modificação exacerbada dos mesmos a partir de homologação da FIA entre os Grupos 1 e 4. Estes disputariam o Campeonato do Mundo de Marcas entre 1976 e 1980, e posteriormente o Campeonato do Mundo de Resistência em 1981 e 1982.

Os fabricantes podiam optar pelo desenvolvimento de um automóvel a partir de um carro de turismo de Grupo 2, o que exigia um mínimo de 1000 unidades homologáveis, ou um automóvel de GT de Grupo 4, o que requeria 400.

A FIA colocaria restricções à largura dos automóveis, o que obrigaria à manutenção da largura original dos veículos, mas possibilitaria a extensão da mesma por prolongamentos dos guarda-lamas. Apenas o capô, o tejadilho e as portas deveriam permanecer inalterados, quiçá uma tentativa frutífera de manter um formato similar às versões de estrada. Seria o catalisador para o que muitos chamaram de Fórmula Silhouette. No geral, os engenheiros tinham liberdade total para desenhar e propor soluções com base em aerodinâmica, materiais inovadores e turbocompressores. Os veículos provenientes deste novo regulamento pareciam “gritar” a década de que advinham, apesar de, pintados a negro, poderem facilmente ser inseridos nas filmagens de um filme da saga Mad Max.

Ao nível do Glam Rock da época poderíamos encontrar este Glam Racing. Cavas das rodas, ailerons, pára-choques e difusores tornavam-se cada vez maiores: se já o 3.0 CSL aparentava ser extraído de um filme ficção científica, o que dizer do 320i Turbo. A panóplia de automóveis de estatuto lendário não encontrará maior concentração do que nesta geração do Grupo 5, uma autêntica pérola do Desporto Motorizado.

Capri à la Zakspeed

Um excelente exemplo da conjugação de todas estas variáveis foi o Ford Capri (ou o que restava dele) da Zakpeed. As versões iniciais surgiam equipadas com um motor de 1.4 litros a gasolina acompanhado de um gigantesco turbo KKK e dois intercoolers. O pequeno bloco era capaz de desenvolver 380cv, mas não seria rival para o que lhe sucederia, um bloco de 1.7 litros com dois turbos associados capaz de gerar 600cv, equipado num automóvel com menos de 800 kg.

O pacote aerodinâmico desta interpretação é sem dúvida tão impressionante como a potência, tomando total vantagem da liberalidade interpretativa das regras de Grupo 5, o que aparecia em linha com as decorações dos Capri da Zakspeed: abstractas, simples ou psicadélicas.

Moby Dick

Outro exemplo de memória gloriosa será o Porsche 935.

“Já ninguém queria continuar a construir protótipos”, lembra Jurgen Barth, vencedor de Le Mans, líder do serviço de competição para clientes da Porsche e, há altura, chefe da comissão para o Campeonato do Mundo de Sports Car.

Há primeira submissão a túnel de vento, surgiu um gigantesco 935, sem qualquer publicidade, pintado inteiramente de branco. Baptizava-se desde logo o modelo com a alcunha que o acompanharia durante o resto da curta vida: Moby Dick. O 935/78, produto da imaginação do engenheiro da Porsche Norbert Singer, representava a exploração plena dos regulamentos de Grupo 5 (particularmente com o pacote aerodinâmico da edição de 1976 das 24 Horas de Le Mans).

O 935 acabou por beneficiar de uma normativa incluída por pedido da BMW e da Ford devido à sua consideração de desvantagem face aos fabricantes com veículos de motor central ou traseiro. Tal permitiu aos fabricantes (com qualquer posição de motor) a modificação mais enfática da bandeja inferior dos automóveis para acomodar o sistema de escape, o que também levou à incorporação de apêndices que aproximavam os automóveis ao conceito de efeito de solo.

O regulamento possibilitou à Porsche o corte de seis centímetros ao chassis do 911 Carrera RSR no qual o 935 se baseava. A necessidade não se fundamentava no melhor acomodar do sistema de escape, mas antes na redução da área frontal por rebaixamento, crucial para as rectas de Le Mans. “Está mais do que explicito nas regras”, dizia Singer, “mesmo que não tenha sido escrito para nós”.

O bloco empregue seria um 3.2 litros com duplo turbo a alimentar o flat-six, uma combinação com resultados máximos na ordem dos 800cv.

Relativamente à altura dos faróis, nada seria mencionado nas regras, o que levaria a Porsche a mais uma solução inventiva. Inicialmente o 935 possuía faróis similares aos do modelo de estrada, mas evoluções tardias evidenciariam os faróis incorporados no para-choques dianteiro.

Um Porsche 935 em modo óptimo de competição, com o motor plenamente pendurado para lá do eixo traseiro, não haveria de ser o automóvel mais fácil de guiar. “Tínhamos de nos habituar a eles”, recorda John Fitzpatrick, que conduziu um 935 ao quarto lugar em Le Mans 1982 e venceria 15 provas IMSA conquistando o título em 1980. “Em grande parte dos casos tínhamos mais potência do que aderência (…) eram autênticos brutos, mas absolutamente maravilhosos”.

O 935 “Moby Dick” seria designado para correr apenas em Le Mans, optando a equipa de fábrica da Porsche por apenas participar num punhado de provas em 1978, deixando o título da categoria para os seus rivais, para os que competiam com automóveis comprados à mesma, ou com derivações feitas por empresas como a Kremer, que acabaria por vencer em Le Mans num 935 K3 em 1979.

À maneira Bávara

A BMW, inicialmente com o 320i Turbo e com o 3.0 CSL, optou pela construção de raiz de um automóvel para as prova de Grupo 5, o mítico M1, incapaz de demonstrar todo o seu potencial muito em parte por atrasos na construção do número requisitado de automóveis pela subcontratação da Lamborghini para a montagem dos mesmos. Tal acabaria por explicar a incorporação da série Procar como acompanhamento ao Mundial de F1 em 1979 e 1980. Pela altura de homologação do M1, a BMW tinha as atenções viradas para a campanha na F1 com a Brabham, uma associação vitoriosa que abrangeria sete temporadas e culminaria no título mundial de Nelson Piquet em 1983.

Por isto mesmo, talvez seja de maior relevo recordar as 28 unidades do mítico 320i Turbo, campeão na categoria de dois litros em 1977 pelas mãos da Junior Team.

Nem sempre as melhores máquinas bávaras surgiram precedidas de um M. Em 1977 estreava-se o Série 3 E21, “vestido” com as mesmas decorações do 3.0 CSL, que conquistou inúmeros eventos internacionais durante a década de 70. O seu aspecto indómito capitalizava plenamente as possibilidades do Grupo 5. O segredo da BMW para o 320i Turbo partia da base: uma mecânica derivada ao máximo da Fórmula 2, um escaparate tecnológico para vivificar os propulsores BMW para a Formula 1 durante a década de 80.

Surgia equipado com o bloco M12 de dois litros em posição longitudinal, capaz de desenvolver “apenas” 300cv nos monolugares, mas de potências muito superiores quando aplicado no monstruoso 320i. Com a implementação de um turbo, o quatro cilindros lograria potências de 600 a 900cv.

Beta Montecarlo

Apesar do interesse dos fabricantes alemães, muito em parte motivado pelo Campeonato Alemão de Sports Car (DRM), também a Lancia foi um hábil contribuidor para o interesse na série com o sensacional Beta Montecarlo, vencedor do WCM em 1979, na categoria até dois litros, e 1980, à geral, e do seu sucessor, o Campeonato do Mundo de Resistência, em 1981.

O Beta Montecarlo possuía como antecessor o protótipo 030 da Abarth e as variantes Stratos Grupo 5 e daria futuramente origem ao mítico 037 Rally.

Hino Eterno

A categoria Special Production Car foi popular não só na Europa como em outros cantos do globo. De 1976 a 1982, o mundo observou a passagem de automóveis verdadeiramente extraordinários: BMW 320i Turbo, Porsche 935, Lancia Beta Montecarlo, Nissan Bluebird SSS Turno, Lotus Europa, Ferrari 512BB LM (para a variante norte americana IMSA), Triumph TR8, Lancia Stratos, entre tantos outros.

Sem nunca sofrer de falta de popularidade, a FIA acabaria por condenar a categoria ao tentar alterar a categorização para implementação dos Grupo A, B e C em 1982, sem qualquer equivalente para a categoria Silhouette. Os modelos acabariam por continuar a competir no campeonato Japonês e na categoria GTX da IMSA, assim como em outros campeonatos nacionais. A única prova não disputada em circuito na qual se veria a participação dos Grupo 5 seria no Giro d’Italia.

A época da espectacularidade desmedida e do arremessar do livro de regras terminava, restando-nos as parcas memórias, os escassos registos da Internet e os Revivals automobilísticos onde a apreciação pode ser, senão plena, extremamente proveitosa.

Poderá o desporto automóvel voltar a conhecer tal honestidade?